A sessão
começaria às 18:25 hs., mas desde às 18:00 hs. eu já estava lá: vendo o cartaz,
lendo os nomes, igualzinho como eu e meu irmão, na adolescência, fazíamos quando
comprávamos um disco novo do Raul Seixas. Ficávamos lendo e relendo as letras,
a lista dos músicos e até mesmo do pessoal da produção. A sensação pré-filme
foi a mesma que eu senti no primeiro show de Raulzito que vi em 1983, no circo
voador. Lembro que nesse show, por causa da lotação, tive que sentar no palco.
Não me incomodei em nada, pois fiquei há pouquíssimos metros dele. Foi este um
dos últimos, se não o último show, em que Raul aparece elétrico e bem disposto.
Fez performances, dialogou com o público, tocou guitarra, cantou. Enfim, fez
tudo que se espera de um artista no palco. Alguns anos depois eu voltaria a um
show na praia, no qual Raul parecia lento e cansado. Esquecia as letras e tocava
errado, tudo isso resultando num show apático e sem vigor. Logo em seguida tive
notícias de um espetáculo no Parque Lage, em 1985, no qual Raul caiu no palco e
não conseguiu terminá-lo.
Parte dessas
histórias – subtraindo às minhas, é claro –, estão no esperado documentário de
Walter Carvalho: “O início, o fim e o meio”, sobre a vida e a obra daquele que
é considerado o pai do rock brasileiro: Raul dos Santos Seixas. O trabalho de
Walter tem a intenção, me parece, de captar as tensões e contradições de uma
figura excepcional, portador de uma enorme potência criativa, mas que apesar
disso, ou mesmo por isso, é atravessado por contradições. Raul nunca foi linear
e sua obra expressa até mesmo na recepção que teve, uma abrangência enorme de
público. Sua obra continha elementos resultado de leituras e estudos formais,
mas como embalava tudo isso num formato musical que flertava até mesmo com o
brega, ficava tudo muito acessível ao grande público. E era mesmo o que ele
queria, como Walter consegue evidenciar. Há sobre isso um depoimento de Caetano
Veloso, que é um dos depoentes do filme, no qual ele tece comentários sobre a
canção “ouro de tolo”, e o impacto que causou no momento em que surgiu. Caetano
depois de um silêncio diz: “aquilo era genial”.
Mas por falar em
Caetano, talvez o documentário tenha perdido um pouco por não explorar mais as
diferenças entre as propostas estéticas que Raul representava de um lado, e o
que Caetano e o tropicalismo representavam por outro. Quem acompanhou um pouco
a obra de Raul sabe que ele mencionou isso em várias entrevistas. Há até uma
canção, em seu último disco – “a panela do diabo” – em que ele tematiza essa
questão: “no teatro vila velha / velho
conceito de moral / bosta nova pra universitário / gente fina intelectual /
oxalá, oxum, dendê / Oxossi de não sei o quê / de não sei o quê...” Ou em
outra canção quando diz: “acredite que eu
não tenho nada a ver / com a linha evolutiva da música popular brasileira / a
única linha que eu conheço / é a linha de impinar uma bandeira...”. Fica
mais do que evidente que Raul não se filiava de modo nenhum a aquela corrente
que vinha de Dorival, passava por João Gilberto e chegava a Caetano e Gil. Ele
se achava de outra rua...
É verdade que o
documentário toca nessa questão, mas não o penetra, e Caetano por sua vez, é só
elogios. Aliás, a mim pareceu que tem Caetano demais e Jerry Adriane de menos.
Isso porque Jerry, apesar de estar mais ligado à fase inicial de produtor,
quando Raul ainda era Raulzito, teve um papel essencial na segunda e definitiva
vinda de Raul para o Rio de Janeiro. Sem essa oportunidade aberta por Jerry,
dada quando os dois se conheceram na Bahia ainda na década de 1960, talvez
nunca tivesse havido a transformação alquímica de Raulzito em Raul Seixas.
Senti também a falta de alguns intérpretes da obra de Raul, que é bem verdade
que não são muitos, mas poderiam estar ali: Ney Matogrosso, Bethânia (que
gravou Gitâ no antológico show “Chico e Bethânia ao vivo no Canecão”) e outros,
que poderiam falar das razões que os levaram a gravar canções do “maluco
beleza”.
Raul tinha um
universo feminino muito forte. Era muito apegado à mãe, casou muitas vezes e só
teve filhas. (além disso, era canceriano, que dizem ser um signo feminino) e
possivelmente por isso o diretor tenha tentado captar, através de suas
ex-mulheres, um pouco desse universo. Mas talvez tenha errado a mão e exagerado
em observações comezinhas e domésticas em excesso. Em alguns momentos parece
“lavagem de roupa suja”, como se diz no vulgo.
Mas se há
excessos na parte do filme que trata das ex-esposas, o depoimento do irmão,
Plínio e dos parceiros, por outro lado, são, junto com a pesquisa de imagens,
os pontos altos do filme. Tanto Paulo Coelho, que não é muito bem visto por uma
parte dos fãs de Raul, quanto Cláudio Roberto, dão uma visão muito clara do que
era aquele convívio afetivo e como funcionava o processo criativo dos dois.
Paulo Coelho deixa claro que Raul inventou um Paulo Coelho compositor, e por
outro lado Paulo ajudou Raul a construir o personagem Raul Seixas, personagem
este do qual Raul parece que nunca mais conseguiu sair.
Ricardo,
ResponderExcluirEmbora ainda não tenha assistido ao filme, considero muito bom seu artigo. Vou compartilhá-lo, via Facebook.
Você fala (e muito bem) no estranhamento ou incômodo que Raul queria causar com sua música. Aliás, "Mosca na Sopa" é um verdadeiro manifesto a respeito disto.
Enfim, goste-se ou não de sua obra, é inegável sua importância dentro de nosso panorama musical.
Um abraço,
Nilton Maia