Vivemos realmente o tempo da simulação e
da dissimulação. Não, prezado leitor, não farei aqui aquele discurso do tipo
“ah, que tempos horríveis estes em que vivemos”, ou aquele outro: “antigamente
é que era bom”. Há uma tendência em muitas pessoas em ver o presente sempre
como ruína e o passado como um tempo ideal no qual parece que tudo era muito
melhor. Há sobre esse assunto um conto do escritor dinamarquês Hans C. Andersen
intitulado “as galochas da fortuna”, no qual uma certa galocha encantada fazia
com que todos que a usassem fosse automaticamente transportados para o tempo ou
condição em que o usuário considerasse ideal. Os desfechos das histórias de
cada usuário da galocha não eram os melhores possíveis, mostrando assim que o
“ideal” é só uma construção da nossa consciência.
Mas
o que trouxe realmente esse assunto à baila nesta coluna foi o fato de um aluno
ter me chamado atenção para uma, como dizer, artista virtual (quase que eu
dizia inexistente). Trata-se de Hatsune Miko, uma criação holográfica com voz
sintetizada por um software chamado vocaloid. Não se trata de dublagem, e sim
de um programa que sintetiza a voz humana. A cantora virtual é uma criação da
empresa japonesa Crypton Future Media
e faz muito sucesso entre o público jovem japonês. Ela é na verdade uma boneca
holográfica tridimensional, e em seus shows é acompanhada por uma banda atual
(uso o termo como sugerido pelo pensador canadense Pierre Levy, para quem o
contrário de virtual não é “real” e sim “atual”). São mega espetáculos com a
presença de milhares de pessoas que pulam, dançam e cantam junto com a cantora.
É
verdade, como diriam alguns menos entusiastas dessas novidades tecnológicas,
que se trata apenas de um grande feito tecnológico completamente esvaziado de
qualquer profundidade ou densidade artística. De fato, a música veiculada por
esse projeto é extremamente banal, mas que cumpre sua função de fazer dançar os
adolescentes, e considerando que este seja o objetivo, ela cumpre de forma
exemplar. As letras também, pelo que pude ver, estão na esfera do interesse dos
adolescentes. Fala de encontros, beijos, ficar juntinhos, etc.
Mas talvez haja
mais que isso para ver na novidade. Os usos futuros dessa tecnologia são talvez
ainda impensáveis, e mais a frente é possível que utilizações menos banais
possam surgir no horizonte. Não há dúvida de que as tecnologias não são apenas
meros suportes para a veiculação de conteúdos. Elas guardam, com esses últimos,
uma relação de proximidade na qual as interferências são inevitáveis. “o meio é
a mensagem”, já foi dito nos anos 1960 pelo também canadense Marshall McLuhan.
Há diversos estudos no sentido de evidenciar como que novas plataformas
tecnológicas possibilitam formulações novas, que seriam inviáveis em suportes
antigos.
Mas
voltando à nossa japonezinha, ela tem uma página no facebook que faz a alegria
da galera teen. A página já conta com mais ou menos 500.000 pessoas e a própria
cantora (se é que é possível) interage com os fãs fazendo promoções, mostrando
novas canções etc. É muito curioso! Ela própria é uma simulação de uma
adolescente de mais ou menos 14 anos, e considerando sua condição virtual,
nunca vai passar disso. Vai ser sempre uma adolescente. Como alguém que
encontrou a fonte da juventude. Isso também trás alguns elementos para que se
reflita. Ela cumpriria mais ou menos o mesmo papel da nossa Sandy aqui no
Brasil, com a diferença que nunca viraria mulher.
Outra
coisa que chama a atenção na figura de Hatsune é que assim como outros desenhos
japoneses, ela não possui os olhos puxados, tão característicos dos japoneses.
Lembro-me de um dos primeiros desenhos japoneses que vi, o Speed Racer, ele também não tinha os olhos nipônicos
característicos. É possível que isso seja por conta da ambição de que o produto
tenha uma aceitação internacional. É possível que os olhos puxados pudessem
caracterizar por demais a origem étnica do personagem impedindo uma empatia
internacional. Mas os olhos redondos podem ser também a caracterização externa
de uma emulação através da qual os japoneses se modernizariam imitando o
ocidente. Ou ainda, os japoneses produziriam em sua própria carne as marcas e
os emblemas daqueles que encarnam a modernidade-mundo.
Quem
estiver curioso para ver a cantora é só dar um pulinho no youtube e ver os
shows que lá estão disponíveis.
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