quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

SÉRGIO RICARDO, UM GUERREIRO DA CULTURA BRASILEIRA


Por Ricardo Moreno

Acredito que todo mundo que escreve sente no íntimo uma curiosidade sobre quem é e como reage seu leitor ante o texto seu. Imagino que isso aconteça tanto com escritores consagrados quanto com simples rascunhadores de notas musicais como este que vos escreve. A curiosidade se desfaz um pouco quando algum leitor sai de sua condição silenciosa e vem para uma área que o torna visível para o escritor. Vez em quando isso acontece, e aconteceu recentemente com o e-mail que recebi do arguto leitor Nilton Maia que me sugeriu que tratasse nessa coluna de um dos grandes nomes da nossa música: Sérgio Ricardo.
            Meu primeiro encontro com Sérgio Ricardo foi numa calçada em Recife, lá pelos idos de 1981. Não exatamente com o homem Sérgio Ricardo, mas com sua obra. Tratava-se de um LP exposto à venda, e nesse tempo eu era ávido frequentador de sebos – na verdade ainda sou –. Estava eu e um amigo, o Haroldo, e foi este na verdade quem adquiriu a preciosidade. Fiquei tão empolgado na volta pra casa lendo os textos que acompanhavam o disco que ele resolveu me presentear. Tratava-se do LP (que até hoje possuo) sem nome de 1973. Em pleno (des) governo da ditadura Médici, Sérgio cantava logo na primeira faixa com sua voz de tiro certeiro: “olho aberto ouvido atento e a cabeça no lugar / do canto da boca escorre metade do meu cantar / eis o lixo do meu canto que é permitido escutar / fala / olha o vazio nas almas olha um violeiro de alma vazia...” e nessa batida seguiam os versos cortantes de mal-dizer endereçados aos que se julgavam donos de tudo.
            Há nesse disco uma inesperada parceria com Glauber Rocha, na faixa “Antonio das Mortes”. A canção foi criada para um personagem do filme Deus e o Diabo na terra do sol, de 1964, e contém versos que Glauber recolheu no sertão nordestino: “Se entrega Corisco / eu não me entrego não / não me entrego ao tenente / não me entrego ao capitão / só me entrego na morte / de parabelo na mão”. O disco é todo composto, com exceção dessa faixa com Glauber, por Sérgio Ricardo, e isso de certa forma aponta para uma característica sua. Nunca esteve definitivamente ligado a grupos. Esteve na bossa-nova, fez música de protesto, se aproximou da musicalidade nordestina através de Glauber, mas manteve-se numa trilha individual sempre a parte.
            Sérgio tem uma carreira artística que pode, sem chance de erro, ser chamada de plural. Fez cinema (premiado inclusive); cantou em boate, ainda com o nome de batismo João Mansur Lufti; foi ator de novela, despertando suspiro como um verdadeiro galã; fez trilhas sonoras para filmes; enveredou com sucesso pelas artes plásticas e participou dos memoráveis e importantes festivais da década de 1960. Em 1967, por exemplo, protagonizou aquela cena que se tornou histórica para todo o sempre, quando impedido pelas vaias do público de cantar a sua música “Beto bom de bola”, quebrou seu violão e o atirou no público.
Respondendo recentemente sobre esse acontecimento no documentário “Uma noite em 67”, Sérgio afirmou com toda simplicidade que jamais faria aquilo de novo. Foi apenas um ato impensado. Recorre à psicologia para dizer que se tratou naquele momento de um animal acuado, que no desespero do apuro partiu para a agressão. Curioso que a música que ganhou o primeiro lugar neste festival, a canção “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam dizia no refrão, quase que dialogando com Sérgio: “quem me dera agora eu tivesse uma viola pra cantar...”. Que ironia! E mais uma curiosidade, já de cunho psicanalítico, sobre esse ocorrido insólito é uma história que dá conta que o pai de Sérgio, Abdala Lufti, certa feita quebrou seu alaúde, que ele tocava amadoristicamente, por conta de que toda vez que ele tocava recebia uma notícia de morte de sua terra natal, o Líbano.
A bossa-nova foi a porta de entrada para que Sérgio Ricardo pudesse desenvolver seu potencial criador. Foi quando veio ao Rio de Janeiro (Sérgio é paulista de Marília) ainda na década de 1950 que ele, tocando em boates na noite em Copacabana, fez contato com Tom Jobim, João Gilberto e outros integrantes do movimento carioca, o que acabou possibilitando que a cantora Maysa fizesse a gravação de sua canção “Buquê de Isabel”. Nesta canção já se percebe um veio que o autor cultivou durante toda sua carreira: a preocupação com o sofrimento do outro. Com o passar do tempo essa perspectiva iria se desenvolver e se politizar de modo que ainda no início da década de 1960 Sérgio parte para uma linha composicional e até mesmo existencial cuja pesquisa musical situava-se numa perspectiva mais popular, buscando no universo sonoro do povo elementos a serem utilizados na sua obra. Nesse sentido ele se aproxima do ideário estético-musical do CPC – Centro Popular de Cultura, e se aproxima de Chico de Assis, um dos fundadores do movimento. Dessa forma, Sérgio torna-se, como ele mesmo diz, um dissidente do movimento bossanovista e abandona “os valores pequeno-burgueses de Ipanema e aquele negócio de muito sorriso, amor e flor”.
Em 2008 saiu pela gravadora biscoito fino o cd “Ponto de partida”, no qual ele regravou composições feitas em quase 60 anos de carreira. A regravação atendeu a critérios de re-elaboração na qual atuam um time de músicos jovens de excelente nível, que criaram um ambiente harmônico e timbrístico muito interessante. Em 2012 este artista multifacetado completará 80 anos, e quem pensa que ele está planejando se aposentar está completamente enganado. Muitas comemorações estão sendo programadas para este octogenário militante de boa cepa. Salve Sérgio!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Los sabios de Córdoba


  O artigo abaixo fala sobre um belo doumentário, cujo trailer postei em seguida, que trata de uns momentos mais interessantes no que diz respeito a colaborações culturais entre ocidente e oriente. Se hoje é lugar comum falar de "choque de civilizações" como um processo inevitável o documentário mostra como já aconteceu de haver o oposto. Talvez essa ideia de conflito exponha as vísceras de um processo racionalista que por sua vez vem a ser a pedra angular da modernidade ocidental.
 Esse tema já foi explorado num belíssimo filme chamdo "O destino", ou Al massir, que retrata a corte de Averroes e mostra um pouco da Espanha um pouco antes da explusão dos muçulmanos. Este é um tema pra refletir...

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Texto do sítio ICArabe inspirado no intelectual palestino Edward Said


  Morador de Nova York, o documentarista Jacob Bender presenciou os atentados de 11 de setembro de 2001. Após o impacto inicial, passou a refletir sobre as políticas de segurança adotadas pelos Estados Unidos, baseadas em teses como a do choque de civilizações entre Ocidente e Oriente, que inviabilizaria a convivência entre povos de diversas origens e religiões.
    O questionamento dessa impossibilidade é o ponto de partida da jornada empreendida por Bender, que se apoia em duas figuras importantíssimas do pensamento tanto do Ocidente como do Oriente, os filósofos Averroes e Maimônides, para retornar à Espanha medieval, onde judeus, muçulmanos e cristãos coexistiam pacificamente.
    Na Andaluzia, sua primeira parada, Bender constata, com a ajuda dos dois “sábios de Córdoba”, que a cultura árabe está no coração da cultura ocidental. O período em que essa região esteve sob domínio árabe foi de florescimento das ciências e da criatividade de forma geral, enquanto o resto da Europa estava mergulhada na privação de conhecimento que caracterizou a Idade Média.
    As obras de Aristóteles, por exemplo foram redescobertas pelos estudiosos árabes que viviam em Al Andalus. Averroes, muçulmano e de origem árabe, fez comentários importantíssimos sobre seus escritos, sendo um dos responsáveis pelo diálogo de Al Andalus com a Grécia Clássica. Já Maimônides, de origem judaica, estudou medicina e relacionou a ciência com suas atividades religiosas, rejeitando qualquer forma de dogmatismo. Ambos nasceram em Córdoba e tiveram de deixar a cidade após a expulsão dos árabes pelos cristãos.
    Bender segue os passos dos filósofos por Marrocos e Egito, além de visitar locais onde suas obras voltaram a ser estudadas posteriormente, como França e Itália. Em paralelo, o diretor busca elementos que refutam a teoria do choque de civilizações, demonstrando a contemporaneidade do pensamento dos “sábios de Córdoba”, que já se colocavam contra qualquer forma de segregação baseada na religião.
    A jornada do diretor termina com a passagem por Israel e Palestina, onde o documentarista reflete sobre o conflito entre judeus e palestinos, se posicionando contra iniciativas como a construção do muro da Cisjordânia, o estabelecimento de assentamentos irregulares e a derrubada de casas de famílias palestinas.
Ao passar por esses locais, relacioná-los ao conhecimento produzido por Averroes e Maimônides, e entrevistar pessoas que estão utilizando suas tradições religiosas para desafiar as proposições mais conservadoras, Jacob Bender produz um libelo à tolerância religiosa e à convivência pacífi ca entre povos de diferentes origens.

domingo, 18 de dezembro de 2011

“Os índios nunca foram atrasados, eles sempre viveram seu próprio tempo”


Entrevista do professor Carlos Walter Porto Gonçalves
Por Joana Tavares para o jornal "Brasil de Fato"

Brasil de Fato – Por que há tanto desconhecimento no Brasil em relação à América Latina?
Carlos Walter Porto Gonçalves – A história do processo colonial, o fato de o Brasil ter sido colonizado por Portugal e a maioria dos países pela Espanha, implica certas diferenças. Nosso continente foi marcado por presenças coloniais diversas, como a inglesa, francesa, holandesa, e ainda há países que são colônias mesmo hoje, como a Guiana Francesa. Mas não é só isso. Parece que a nossa dificuldade de nos aproximar do resto da América Latina e do Caribe não é uma questão de língua – com certo esforço a gente acaba se entendendo –, mas o processo de independência diferenciado. O Brasil não seguiu a ideia do “inventar ou errar” – uma expressão de Simón Rodríguez – dos outros países, que tentaram inventar um regime republicano, diferente do regime monárquico que reinava nas metrópoles colonizadoras. O Brasil foi o único que fez a independência e se manteve como império, inclusive com uma monarquia, com uma casa real. E achava que por ser uma monarquia era superior às “repúblicas de caudilho” da América Latina, expressão que continua a ser usada hoje pelas elites brasileiras e pela mídia. E de certa forma os países de colonização hispânica são obrigados a conhecer um pouco mais uma história que lhes é comum, haja visto que muitos países surgiram se emancipando de outros, como a Colômbia da Venezuela. A história deles tem que se remeter uma à outra. A história do Brasil em face de nossos vizinhos é mais desconfortável, por ter se apropriado de territórios que, a rigor, eram de outros países. Cabe também falar que a maior parte das elites formadas na América Latina continuou preocupada em se integrar com as elites europeias e dos países imperialistas para continuar exportando seus diversos produtos.

Qual o sentido político do termo “América Latina”?
O termo “América Latina” foi usado pela primeira vez por um poeta colombiano, José María Caicedo, num poema chamado “As duas Américas”, em 1854. Ele usou essa expressão com clara posição de tensão em relação à América anglo- saxônica. Ele estava muito impactado pelo que havia acontecido, numa data que todos nós deveríamos ter sempre em mente: 1845- 1848, que é o período da guerra dos EUA contra o México. Quando os EUA fizeram a independência eram apenas as 13 colônias situadas a leste. Todas as terras do Texas até a Califórnia – com todos aqueles nomes em espanhol – foram tomadas do México. De certa forma, o Caicedo dá continuidade ao que Simón Bolívar tinha percebido nos anos de 1820 em função da posição norte-americana em relação ao Haiti, o primeiro país do mundo a abolir a escravidão. O que faz os Estados Unidos? Junto com a França, faz pressão para que o Haiti pague por cada escravo que tinha se tornado livre, o que faz com que o país fique sufocado em dívidas. E Simón Bolívar, que recebeu armas dos revolucionários haitianos para fazer os processos de libertação da América Latina, percebe que a doutrina de Monroe, “América para os americanos”, era para os americanos do norte, para os estadunidenses. Percebeu isso em 1823 e denunciou imediatamente, convocando uma integração entre os países, entre iguais, não uma integração subordinada. Ele usava a expressão “Pátria Grande”, a América integrada; ele dizia que tínhamos uma “pátria chica” – Brasil, Venezuela etc. – mas também a Pátria Grande. Então, a expressão “América Latina” tem um significado muito forte, porque abriga o caráter anti-imperialista, antagoniza com a América anglo-saxônica. Mas ao lado do seu caráter emancipatório, Caicedo não estava livre de um certo eurocentrismo. A expressão ‘latina’ ignora todo o patrimônio civilizatório que aqui existe e que não é de origem latina, como os quéchuas, os aimarás, os tupiguarinis, os maias.

Qual o papel dos países latinoamericanos no mercado mundial?
A demanda de matérias-primas em países como a China faz com que o Brasil e outros países da América Latina passem por um processo de reprimarização da sua pauta de exportações. E as pessoas estão vendo isso como uma vantagem! Para os capitalistas com visão de curto prazo é bom, porque estão ganhando dinheiro. Na verdade, isso é uma nova fase de um processo que tem 500 anos. Sempre fomos exportadores de produtos primários ou manufaturas. Há um mito de que estamos vivendo um processo de modernização tecnológica, com o agronegócio e seus equipamentos modernos. É um mito porque o Brasil no século 16 já exportava manufaturados, como o açúcar. Nossa história é muito colonizada, contamos a história como os europeus nos contaram. Inclusive europeus que nos são caros, como Marx. Marx conta a história da revolução industrial a partir da Europa, mas as primeiras manufaturas, os engenhos de açúcar, estavam no Brasil, no Haiti, em Cuba. Nós já éramos modernos tecnologicamente, mas uma tecnologia colocada aqui não para nos servir, mas para nos explorar. A rigor, um trator e computador fazendo plantio direto hoje é o equivalente ao que fazíamos no século 16, com tecnologia de ponta. Que ideologia é essa da “modernidade” que achamos que veio para nos salvar? A modernidade sempre nos fez ser o que somos. A gente não consegue se desprender da ideologia eurocêntrica da modernidade e acabamos propondo como solução o que é parte do problema.

O que são os megaprojetos de infraestrutura colocados para o continente hoje?
Há muitos projetos de infraestrutura em curso. Na América Central, há um projeto de integração física, que é o Plano Puebla Panamá, hoje rebatizado como Plano Mesoamérica. E temos a Iirsa, Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, proposta numa reunião convocada pelo Fernando Henrique Cardoso no ano 2000. É um grande projeto de portos, aeroportos, estradas, uma rede de comunicação, que torna o espaço geográfico mais fluido e diminui o tempo socialmente necessário para a produção. Essas obras estão sendo feitas a partir de uma proposta das elites, feita pelo capital. No caso do Brasil, feitas com a presença muito incisiva do BNDES, que tem mais dinheiro que o Banco Mundial para investir. Esses investimentos já estão trazendo problemas, no Equador, na Bolívia, na Argentina.

O Brasil tem uma postura imperialista em relação aos outros países da América Latina?
A estratégia brasileira não é antagônica com a estratégia norte-americana. A burguesia brasileira sabe manejar muito bem o Estado quando lhe é conveniente. Sabe manejar o BNDES para os seus interesses, usar os recursos. As grandes empresas de engenharia civil do Brasil estão presentes em todos os países da América Latina. O complexo de poder envolvido no agrobusiness é um belíssimo exemplo: é um complexo de aliança política entre as burguesias brasileiras articuladíssimas com a burguesia internacional, que estão se beneficiando dessas estruturas. É uma burguesia associada ao imperialismo americano, mas que tem um projeto próprio ao mesmo tempo. A ideia de subimperialismo de Ruy Mauro Marini me parece correta. A diplomacia brasileira não usa o termo “América Latina”, diz “América do Sul”, quer dizer, está preocupada com a integração física para exportar. Estamos fazendo com nossos povos aquilo que sempre fizemos desde o período colonial.

Como esse projeto impacta as populações indígenas e camponesas?
Quem está se revelando os maiores antagonistas desse projeto são as populações indígenas, camponesas e afro-latino- americanas. Elas que estão sendo expulsas de suas terras. A Iirsa diz claramente que os projetos vão se expandir para áreas de vazios demográficos. A Amazônia não é vazia. Não é à toa que o imperialismo diz que os indígenas são os novos comunistas. São áreas cujas populações historicamente sempre viveram com a Pachamama. Os índios sequer têm um nome para a “natureza”, porque significaria pensar o homem como fora da natureza. A Pachamama não é a natureza, é a origem de tudo, de todas as energias, todos nós fazemos parte dela. Eles não são antropocêntricos, não vivem na matriz da racionalidade que vem da Europa, que hoje é parte da crise. Se há 50 anos as forças hegemônicas podiam passar um trator por cima dessas comunidades, hoje essas populações conseguem se mobilizar e encontram eco para suas denúncias. O próprio capitalismo não sabe o que fazer com essas áreas. Tem um setor novo do capitalismo que é o da biotecnologia, que depende de informação do geoplasma. Para esse capitalismo, a diversidade biológica é um valor, ele se confronta com o capitalismo predador que quer derrubar a mata para entrar com gado na Amazônia. Hoje, o capitalismo tem dentro de si um confronto sobre o que fazer com essas regiões. Nessa brecha de dúvida sobre o modelo que vai imperar, abriu-se um espaço para que as populações indígenas encontrassem uma possibilidade maior de falar. Antes havia um consenso, inclusive entre a esquerda, com raríssimas exceções, que achava que tinha que passar o trator. Era uma noção eurocêntrica de “moderno” e “atraso”. Os índios nunca foram atrasados, eles sempre viveram seu próprio tempo. Para nós é fundamental fazer a crítica não só ao capitalismo, mas à mentalidade colonial, à colonialidade do saber e do poder. A discussão dessas populações que estão sendo atingidas é fundamental. A própria ideia de uma Via Campesina só é possível na medida em que essas populações adquirem uma centralidade muito mais importante nos dias de hoje; o campesinato e aquilo que o Darcy Ribeiro chamava de indigenato, um campesinato etnicamente diferenciado. Estamos vivendo uma crise do capitalismo e ao mesmo tempo uma crise de padrão civilizatório. E, nesse sentido, até setores de esquerda, que embarcaram numa visão desenvolvimentista, não perceberam que na verdade existem múltiplas forças produtivas que se desenvolveram por populações outras. Já havia uma sofisticada metalurgia entre as populações originárias de nuestra América, uma sofi sticada agricultura, arquitetura, como Machu Pichu. Os indígenas, sabe-se lá como, conseguiram preservar muitas das coisas desse período, conseguiram manter sua identidade própria. Esses povos têm algo a nos ensinar. Temos que ter a humildade de ver como, depois de 500 anos, eles ainda resistem com essa força. Eles estão mais vivos do que nunca.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A DÉCADA DE 1930 E A CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA


          A música popular do Brasil sempre foi dadivosa no que diz respeito ao aparecimento de personagens importantes para sua história. Este campo talvez só seja igualado em sua abundância de craques, por outro campo também pródigo: o futebol.  A década de 1960, por exemplo, fez surgir uma quantidade espantosa de compositores, músicos e cantores que se tornaram como que canônicos no campo. Mas antes dessa geração valorosa sessentista, uma outra foi também, e primeiramente, chamada de “era de ouro da música popular brasileira”: a década de 1930.
Ela ganhou essa alcunha, digamos assim, por conta de ver florescer uma geração que para sempre ficou marcada no imaginário musical brasileiro. Surgiram nesse período compositores tais como Noel Rosa, Assis Valente, Dorival Caymmi (surgido no final da década) e Wilson Batista associados com intérpretes como Francisco Alves; Orlando Silva e Mário Reis. Este último considerado como um dos cantores que influenciaram João Gilberto na criação de um jeito diferente de cantar, que seria a marca da bossa-nova no final da década de 1950. 
            Não foram poucos os sucessos que permaneceram para sempre no repertório do cancioneiro nacional: carinhoso, de Pixinguinha; com que roupa, de Noel Rosa; Camisa listrada e boas festas, de Assis Valente, esta última vindo a se tornar um verdadeiro hino do natal brasileiro gravada na ocasião pelo estreante Carlos Galhardo (“anoiteceu / o sino gemeu / e a gente ficou / feliz a rezar / Papai Noel...). A lista dos sucessos é grande e tomaríamos o espaço desse artigo se tentássemos nos referir a todas. 
            Mas, como bem gosta de assinalar os historiadores, toda essa movimentação artística e musical não poderia ter se dado no vazio. Transformações políticas e tecnológicas estavam ocorrendo e dando combustível para o surgimento e proliferação da canção popular, e em particular o samba. Em 1922 começam as atividades do rádio no Brasil, e na década seguinte ele já era um meio de entretenimento e informação amplamente popular no país. Começa então a consagração de ídolos nacionais e canções que vão ser conhecidas por todo o Brasil. A rádio nacional, no fim da década de 1930 foi importante para a construção de um imaginário nacional, e foi também ela responsável em grande medida pela transformação do samba como gênero nacional. A ambição de construir uma identidade nacional, que já era uma ambição das elites brasileiras desde o século XIX, vai ganhar grande impulso com o projeto identitário brasileiro levado a cabo pelo governo Vargas. Foi na noite de 10 de novembro de 1937 que Getúlio em sua “proclamação ao povo brasileiro”, em gesto simbólico, queima as bandeiras regionais por considerá-las uma ameaça a unidade nacional. Esse ato foi transmitido para todo país através das ondas do rádio.
            Um pouco depois da criação do rádio no Brasil, outro fator foi de suma importância para a propagação da canção popular e em particular do samba: o início das gravações elétricas, em 1926, em substituição ao antigo sistema mecânico. Se no antigo sistema mecânico se destacava a Casa Edison, como empresa ligada a gravação dos discos, na nova plataforma tecnológica surgem várias empresas multinacionais interessadas no novo empreendimento: Odeon, Victor, Columbia e outras. O mercado de discos torna-se promissor ainda mais pelo processo de modernização pelo qual passava o país, com a concomitante criação de uma classe média urbana, a qual seria a primeira a adquirir esses novos produtos, que não obstante estavam destinados a se popularizar cada vez mais.
 Há também nesse período, segundo alguns pesquisadores como o professor e musicólogo Carlos Sandroni, uma transformação do samba fazendo com que este se “livrasse” de suas raízes ligadas ao maxixe e se tornasse o que veio a se tornar posteriormente. Ele atribui essa transformação a um grupo de sambistas cariocas do bairro do Estácio, dentre eles Ismael Silva. A professora Walnice Nogueira Galvão, no prefácio do livro de Sandroni, conta que Donga, representante da primeira geração de sambistas teria dito que Ismael não compunha sambas e sim marchas, e em resposta Ismael teria dito que Donga não fazia samba e sim maxixe. Curioso assinalar que tanto as elaborações da primeira geração, que se deu predominantemente nas casas das famosas tias baianas na Praça onze, quanto à da segunda geração, no início da década de 1930 no bairro do Estácio, se deram num espaço geográfico batizado por Heitor dos Prazeres como “pequena África do Rio de Janeiro”.
            Polêmicas a parte, fato é que a década de 1930 foi um divisor de águas na história dessa venerável senhora chamada Música Popular Brasileira.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Um Nobel de Economia explica Occupy Wall Street

    Um Nobel de Economia explica Occupy Wall Street
    Por Joseph Stiglitz | Tradução: Antonio Martins 

    O movimento de protesto que começou na Tunísia em janeiro e se espalhou em seguida para o Egito e a Espanha tornou-se agora global. Os protestos abraçaram Wall Street e dezenas de cidades nos Estados Unidos. A globalização e as novas tecnologias permitem aos movimentos sociais vencer fronteiras tão rapidamente quanto as ideias. E os protestos sociais encontraram terreno fértil em toda a parte. Um sentimento de que? o sistema? faliu, e a convicção de que, mesmo nas democracias, o processo eleitoral não é suficiente ? ao menos, sem forte pressão das ruas. Em maio, estive no local onde se deram protestos, na Tunísia. Em julho, falei para os indignados da Espanha. De lá, fou ao Cairo, encontrar os jovens revolucionários na Praça Tahrir. Há algumas semanas, falei com o pessoal do Occupy Wall Street, em Nova York. Uma frase simples, criada por eles, expressa um pensamento comum: ?Somos 99%?. 
    O slogan ecoa no título de um artigo que recentemente publiquei: ?Do 1%, para o 1% e pelo 1%?. Ele descreve o enorme aumento de desigualdade nos Estados Unidos, onde 1% da população controla mais de 40% da riqueza e recebe mais de 20% da renda. E os que pertencem a este grupo rarefeito são frequentemente remunerados, de forma extravagante, não por terem contribuído para a sociedade, mas porque são, para dizer de forma franca, bem-sucedidos (e às vezes corruptos) caçadores de rendas alheias.
    Esta afirmação não nega que alguns entre o 1% tenha feito contribuições importantes à sociedade. Na verdade, os benefícios sociais de algumas inovações reais (ao contrário dos ?produtos? financeiros que acabaram desencadeando destruição na economia mundial) são bem maiores do que aquilo que os inovadores recebem. 

Mas, em todo o mundo, influência política e práticas de oligopólio (frequentemente garantidas por meio da política) foram centrais para o aumento da desigualdade econômica. E os sistemas tributários nos quais um bilionário como Warren Buffett paga percentualmente menos impostos que sua secretária ? ou em que os especuladores que ajudaram a derrubar a economia global são menos tributários do que os trabalhadores ? reforçaram a tendência. 
     Pesquisas recentes mostram como as noções de justiça são importantes e estão arraigadas entre os participantes dos protestos na Espanha. Eles, e seus colegas de outros países, têm razão de estar indignados. Este é um sistema no qual os banqueiros são resgatados, enquanto suas vítimas são obrigadas a lutar pela sobrevivência. Pior: os banqueiros estão de volta a seus gabinetes, recebendo bônus anuais superiores ao que a maioria dos trabalhadores espera ganhar durante toda a vida, enquanto jovens que estudaram muito e seguiram as regras do jogo não veem perspectivas de um emprego decente. 
      O aumento da desigualdade é produto de uma espiral viciosa. Os rentistas usam seus recursos para criar leis que protejam e ampliem sua riqueza ? e sua influência. A Suprema Corte dos Estados Unidos, deu às corporações, numa decisão que se tornou conhecida como Citizens United, rédea solta para usar dinheiro e influenciar os rumos da política. Mas enquanto os ricos podem usar seu dinheiro para ampliar o alcance de seus pontos de vista, a polícia não permitiu que eu usasse um megafone para me dirigir aos manifestantes do Occupy Wall Street. O contraste entre a democracia ultra-controlada e os banqueiros livres de regulação não passou despercebido. Mas os manifestantes são engenhosos. Eles ecoavam o que eu dizia entre a multidão, para que todos pudessem ouvir. E, para evitar que o diálogo fosse interrompido por palmas, usavam sinais de mão, quando queriam expressar concordância. 
  Eles estão certos ao dizer que há algo errado com nosso sistema?. Em todo o mundo, temos recursos desaproveitados ? gente que quer trabalhar, máquinas paradas, edifícios vazios? e imensas necessidades não realizadas: luta contra a pobreza, promoção do desenvolvimento e reorganização da economia para enfrentar o aquecimento global, apenas para citar algumas. Nos Estados Unidos, depois de mais de 7 milhões de despejos, nos últimos anos, temos casas vazias e gente sem casas. 
    Os manifestantes têm sido criticados por não terem uma agenda. Mas esta crítica não compreende o sentido dos movimentos. Eles expressam frustração com o processo eleitoral. Eles são um alarme. 
  Em 1999, os protestos em Seattle, durante o que seria o início de uma nova rodada de negociações comerciais, chamaram atenção para as falhas da globalização e das instituições e acordos que a governam. Quando a imprensa examinou as alegações dos manifestantes, descobriu que havia verdade nelas. As negociações comerciais que se seguiram foram diferentes ? ao menos, em princípio. Elas deveriam levar a uma Rodada de Desenvolvimento, para enfrentar algumas das deficiências sublinhadas pelos protestos. O Fundo Monetário Internacional foi submetido, mais tarde, a reformas significativas. Também os manifestantes pelos direitos civis nos Estados Unidos chamaram atenção, nos anos 1960, para o racismo institucionalizado na sociedade norte-americana. Os traços do racismo não foram superados, mas a eleição do presidente Barack Obama mostra quanto estes protestos mudaram os Estados Unidos. 
      Num certo sentido, os manifestantes de agora pedem pouco: uma chance para usar seus talentos e habilidades. O direito a trabalho com salário decente. Uma economia e sociedade mais justas. Seu desejo é de evolução, não de revolução. Mas num outro plano, eles estão lutando por algo grande: uma democracia em que as pessoas, e não os dólares, falem mais alto; e uma economia de mercado que entregue o que promete. 
    Ambas reivindicações estão ligadas. Como vimos, mercados sem regulação conduzem a crises econômicos e políticas. Os mercados funcionam de forma apropriada apenas quando enquadrados por regulações apropriadas, definidas por governos. E estas regulações só podem ser estabelecidas numa democracia que reflita o interesse comum, não o interesse do 1%. O melhor governo que o dinheiro possa comprar já não é suficiente

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

DE PALÍNDROMOS E CANÇÕES



          Em um verso inesquecível da música popular brasileira, na canção “Clube da esquina nº2”, o letrista Márcio Borges diz que “de tudo se faz canção”. E é mesmo! Nada que é humano escapa aos cronistas e letristas de nossa MPB. Talvez tenhamos apenas que lamentar o fato de não haver um maior número de experimentações de temas e formas para se compor letras de canções em tempos mais recentes. É claro, por outro lado, que muito se fez nesse sentido e podemos contar em nosso cancioneiro com um repertório de temas muito variados. Alguns até diriam, fazendo eco ao vulgo, que estou chorando de barriga cheia... Pode ser!
            Mas de toda essa trama de assuntos que inspiram os nossos artesãos da palavra cantada, uma me chama atenção para esta breve nota/comentário: é a canção “Relp” de José Miguel Wisnik. Nela o autor, um experimentado nas lides literárias, pois é professor de Literatura na USP, escritor e ensaísta de mancheia, constrói um ambiente um tanto fantástico – como o de “Alice no país das maravilhas” –. Ambiente labiríntico e enigmático no qual as palavras refletidas ganham novo colorido e se espraiam tal qual um cristal a refratar sentidos. Tudo isso em uma atmosfera infantil, ou, para ser mais preciso, infanto-juvenil.
            Esta situação “espelhar” ou refletida para a qual a canção nos remete é elaborada primeiramente com o recurso do palíndromo, que para quem não conhece, é uma construção escrita na qual a leitura da esquerda para a direita, que é a nossa forma normal de leitura, se iguala a leitura feita da direita para a esquerda. A palavra “arara” é um bom exemplo. Só que um bom palíndromo é feito com frases, e para além da brincadeira e do jogo “espelhado”, ele também tem, quando bem feito, uma carga de deslocamento de sentido muito interessante.
            No início da canção, na gravação feita pelo próprio Wisnik, Jussara Silveira e Arnaldo Antunes, este último, com sua inconfundível voz grave nos diz o primeiro dos palíndromos que vão se desdobrar durante a canção: “lá vou eu em meu eu oval”. Ressoa bastante psicodélico, não? O que seria um eu oval?  A frase é dita sem nenhum acompanhamento instrumental, a título de introdução mesmo, como que para nos situar dentro da atmosfera onírica a qual a canção irá em breve nos conduzir.  Em seguida instaura-se o ambiente “Alice nos país das maravilhas” quando ele diz: “a menina olha no espelho pelo ralo e diz oi rato otário, que que tu faz aí?” (colocarei em negrito os palíndromos do versos). Mas quem responde não é o rato e sim a própria voz da menina que na condição de eco, e olha aí a situação “espelhar” de novo, diz “eco vejo hoje você.
            A canção segue desvelando a situação psicológica da menina: “a menina fica assim, meio assim, quer ser cor e ser ocres”. E “num repente começa a sussurrar a rezar, uma reza que mais parece um rap / um help pro céu um salmo / ó mãe tu era réu te amo / ó mãe tu era réu te amo”. Aqui o clima deriva para uma situação psicanalítica, ou então, como disse o próprio Wisnik, para um tema do escritor russo Dostoievski. A nossa “Alice” fica ali, “rindo e polindo / o que parece ter dentro e fora de si / ou então construindo um lindo palíndromo (e aqui a canção torna-se auto-referente) / outro tesouro de ouro e marfim / que mima a mina e anima a mim / num breque sem fim (e aqui “breque” poderia ser uma referência consciente ou inconsciente ao pintor cubista Georges Braque) / de um samba tão velho que bate no espelho e se vê no cristal / ela faz o seu e o meu carnaval cantando assim: só dote e dádiva é a vida de todos... o ambiente agora se abre para um gozo dionisíaco no qual o coletivo “todos” é indício de uma totalidade que exercita o pleno direito ao prazer e a um gozo comunal proporcionado pelo carnaval, festa do des-limite e do prazer orgiástico.
            A canção palíndromo de José Miguel Wisnik, como é próprio da linguagem dos grandes poetas, pode ser explorada e tateada milimetricamente até nos cansarmos de encontrar nela os múltiplos sentidos de sua polissemia. E, como disse o próprio Wisnik comentando as relações entre canção popular e literatura no Brasil: “isso não é pouca coisa”.

Os. Os palíndromos contidos na canção foram construídos pela filha do compositor, cujo nome no momento me escapa.

domingo, 30 de outubro de 2011

Tem aldeia no hip hop


Cristiano Navarro, de Dourados (MS)
Para o Jornal Brasil de Fato


  Na apresentação de um trabalho de escola sobre meio ambiente, Bruno começou a rimar. No ano de 2005, o improviso com as palavras era apenas uma brincadeira que o aluno Guarani Kaiowá da escola Araporã, da terra indígena de Dourados, gostava de fazer com seus colegas no recreio. Hoje Bruno é o líder do Brô MC’s, primeiro grupo de rap indígena no Brasil a lançar um disco.
E o que canta o Brô MC’s? Segundo eles mesmos, canta rap com compromisso. “A gente canta nossa realidade, porque a mentira não cola com a nossa cara”, afirma Bruno.
Brô MC’s, primeiro grupo de rap indígena no Brasil a lançar um disco
Com mais de 11 mil pessoas vivendo em 3,5 mil hectares, a reserva indígena de Dourados está longe da imagem idílica de uma aldeia espaçosa de natureza exuberante e muito próxima da realidade das favelas das grandes cidades. Consumo de drogas, trabalho infantil e altos índices assassinatos estão presentes no cotidiano dos jovens do Brô. E no entorno de sua aldeia, a restrição do acesso aos seus territórios, o preconceito e o racismo da sociedade envolvente. “A gente tenta mostrar a verdade do que a acontece na aldeia, na nossa comunidade. O pessoal da aldeia quando vai para a cidade sofre muito preconceito, os lugares que fecham a porta na cara dos índios. Isso a gente coloca no rap. Na verdade o rap já um protesto” explica Clemerson, irmão de Bruno.
Mas o caminho até o primeiro disco demo foi longo. Os irmãos Clemerson e Bruno iniciaram sua carreira artística descobertos durante as gravações do filme Terra vermelha, do diretor Marco Bechis, sobre a luta pela reconquista do território, quando compuseram a primeira letra “Saudação da Aldeia”. Mais tarde, em parceria com o grupo Fase Terminal, a música recebeu uma base e outro nome, “Yankee No”. “A música era um canto que o pajé do Panambizinho fazia nas gravações do filme. Daí, eu vi e modifiquei pra levada do rap”, conta Bruno.


Capaz em tudo”
Em seguida ao filme, uma oficina de hip hop organizada pela Central Única de Favelas (Cufa) aproximou outros dois irmãos, Kelvin e Charlie. Assim os quatro formaram o primeiro grupo de rap indígena brasileiro. Ao final da série de oficinas os rappers gravaram um disco demo em cima de bases de outras músicas.
No início da gravação do CD os caciques passaram a criticá-los. “Diziam que esse não era o nosso futuro. Meu avô, que é cacique, veio me perguntar por que a gente gravou isso. Foi aí que eu peguei um CD e falei ‘senta aqui que eu vou mostrar pra você. Presta a atenção nas letras. O que tá falando é coisa da nossa realidade, da nossa cultura’. E depois eu mostrei para todas as lideranças da região e mostrei a música e a letra. Numa reunião onde estavam todas as lideranças eles falaram: ‘está certo é isso mesmo que acontece’”, relata Clemerson. “Os mais velhos entenderam e sabem que a gente tem que mostrar que o índio é capaz em tudo. E pode ser professor, agente de saúde, advogado ou cantor de rap. E que nosso povo não é só isso ou aquilo, a gente é o que pode fazer a diferença”, completa o irmão.
Higor Lobo, do grupo Fase Terminal e membro do Cufa, que produziu o disco da banda, conta que a formação feita na aldeia não se dedicou apenas ao aprendizado das “técnicas” do rap, mas também à leitura crítica da realidade. Hoje, o produtor, que também é geógrafo e militante do movimento hip hop desde 1995, percebe “uma formação crítica consistente nas letras”.

Multicultural

Bruno: “A gente canta nossa realidade, porque a
mentira não cola com a nossa cara - Foto: Divulgação
Misturando letras em guarani e português, o grupo também introduziu instrumentos da música de sua etnia. “As músicas surgem em conjunto, sentado na roda, trocando altas ideias. E a bases foram usadas de outros grupos, de que a gente só modificou usando os instrumentos da aldeia mbaraka, para a base ficar legal, para diferenciar e ter a nossa cara. Porque o grupo sai da aldeia e leva o conhecimento daqui para fora”, explica Bruno.
Se no Brasil o Brô MC’s é um grande surpresa no meio do movimento hip hop, em outros países da América Latina, não. O antropólogo Spensy Pimentel, autor do Livro vermelho do Hip-Hop, chama atenção para a penetração do movimento. “A internet tem nos permitido descobrir, pouco a pouco, o quanto o movimento hip hop espalhouse pela América Latina. Até onde eu descobri, há grupos de rap cantando em língua indígena em lugares como Bolívia (aymara) e Chile (mapuche). Independente da questão linguística, a identificação étnica/racial com a matriz indígena aparece em inúmeros contextos. Há muito rap em favor das comunidades zapatistas de Chiapas, por exemplo, não necessariamente feito por quem mora nas comunidades”.
Além do ineditismo, Lobo destaca o fato de o grupo trabalhar contra os estereótipos negativos e preconceituosos. “O hip hop serve como ferramenta de acesso para as demandas deles e acesso para os não indígenas. A partir do Brô se cria outra perspectiva de protagonismo. São eles mesmos falando dos problemas deles, pra eles e pra os não índios”.

Natural
Lobo esclarece que o interesse pelo hip hop surgiu espontaneamente e não é apenas dos quatro integrantes do Brô. “Do ano de 2000 ao ano de 2008 havia um programa de rádio muito popular chamado “Ritmos da batida”, do Naldo Rocha. Logo todo o pessoal começou a ouvir o som e procurar as roupas do rap”.
Uma década depois, entre os jovens da aldeia, o movimento hip hop avança. O sucesso do Brô fez nascer uma série de grupos de break, grafite e novas bandas rap. “Tem grupos novos na aldeia e em outras também. Grupos de break e até um pessoal que tirou o desenho do papel para por na parede”, diz Bruno.
E o sucesso do Brô tem ultrapassado os limites do seu povo. “Agora a gente toca nas rádios, principalmente no programa Blackout, na rádio AM Tupinambá. Os pedidos vêm de fãs da cidade, especialmente das universidades locais”, comenta Clemerson, entusiasmado.
Além da realidade urbanizada da aldeia de Dourados com a qual convivem os rappers, outro tema é importante para o grupo. “Nossas letras falam muito das lideranças que morreram nas áreas de conflito. Muitas vezes a gente recebe notícias, relatos e vídeos contando como foram esses confl itos. Como o vídeo que assistimos sobre o confl ito em Paranhos e aí mostraram a expulsão das famílias que foram retiradas. Os pistoleiros chegaram atirando, contra os velhos, contra as crianças e xingavam os Guarani dizendo que eram porcos, que só queriam a terra para sujar. Isso para gente é tema pra música”.

Além do MS
Fora do Mato Grosso do Sul, o Brô se apresentou em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, onde ganhou o respeito de artistas reconhecidos. “A gente tem parceiros que moram longe. Lá em São Paulo, a gente conheceu o Xis, que acolheu o grupo. Em Brasília, o Gog ajudou a gente para caramba. Foi bem bacana ouvir ele dizer: ‘segue em frente, que essa é a realidade que vocês têm que mostrar para o mundo e através disso mudar a vida de outras pessoas’”, lembra Bruno. Alguns destes parceiros citados pelo rapper devem aparecer no próximo disco do grupo. Além dos parceiros, o próximo disco deve ter produção e distribuição profi ssionais e 80% das faixas serão cantadas só em Guarani.
Perguntados sobre influências, os nomes que surgem são Racionais MC’s, Gog, MV Bill, A Família, Dexter, Fase Terminal, no Brasil. Internacionais são Notorious B.I.G., Tupac Shakur, Eminem e até um artista mais pop como Chris Brown. Outros ritmos, não. “A gente é rap na veia”, brinca Clemerson. “Mas claro, tudo na levada do Guaxiré [dança típica]”, ressalta o irmão.

sábado, 29 de outubro de 2011

William Waack: entre o amor platônico e a relação carnal





                                                           
   Quanta ingenuidade a minha. O que pensava ser amor platônico entre o jornalista William Waack e os EUA trata-se na verdade de relações carnais de primeiro grau. Não pode ser outra a constatação após as revelações do Wikileaks. Quem acompanha o jornal da noite da Globo e tem um pouco de massa cinzenta já percebeu de longa data a subalternidade do jornalista global, quando o assunto é os Estados Unidos. Mas o que se configura agora é gravíssimo. Trata-se de um funcionário, que deve até ter carteira assinada. Ou ele faz tudo isso por simples "patriotismo"??
 Curioso também é o fato de que os grandes meios tentaram ocultar esse fato. Que eu saiba só o JB online divulgou. Não vi a indignação do Jabour; nem o bordão "isso é uma vergonha" do Bóris Casoy, ou qualquer coisa parecida. Talvez seja isso que eles chamam de liberdade de imprensa. Isso é um escândalo e deve ser repudiado por todos aqueles que acreditam na possibilidade da autonomia dos povos. Todos sabem o papel que os Estados Unidos têm no cenário internacional. No financiamento de golpes, sequestros e outros crimes, tais como a utilização de sua máquina de guerra (quando a ação dos informantes não possibilita uma ação de domínio mais "suave") para o desenvolvimento de suas corporações. Quem tiver dúvida sobre isso leia o livro de Naomi Klein (entre tantos outros) "A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre".
 O envolvimento de um jornalista da importância de Waack, por um lado, e o silêncio quase absoluto da grande mídia por outro, deve nos servir de alerta para que reflitamos sobre o que essa mídia pensa sobre democracia.

domingo, 9 de outubro de 2011

Occupy Wall Street: a coisa mais importante do mundo hoje


Por Naomi Klein em 07/10/2011
A questão é que hoje todos são capazes de ver que o sistema é profundamente injusto e está cada vez mais fora de controle.
Eu amo vocês. 
E eu não digo isso só para que centenas de pessoas gritem de volta “eu também te amo”, apesar de que isso é, obviamente, um bônus do microfone humano. Diga aos outros o que você gostaria que eles dissessem a você, só que bem mais alto. 
Ontem, um dos oradores na manifestação dos trabalhadores disse: “Nós nos encontramos uns aos outros”. Esse sentimento captura a beleza do que está sendo criado aqui. Um espaço aberto (e uma ideia tão grande que não pode ser contida por espaço nenhum) para que todas as pessoas que querem um mundo melhor se encontrem umas às outras. Sentimos muita gratidão. 
   Se há uma coisa que sei, é que o 1% adora uma crise. Quando as pessoas estão desesperadas e em pânico, e ninguém parece saber o que fazer: eis aí o momento ideal para nos empurrar goela abaixo a lista de políticas pró-corporações: privatizar a educação e a seguridade social, cortar os serviços públicos, livrar-se dos últimos controles sobre o poder corporativo. Com a crise econômica, isso está acontecendo no mundo todo. 
Só existe uma coisa que pode bloquear essa tática e, felizmente, é algo bastante grande: os 99%. Esses 99% estão tomando as ruas, de Madison a Madri, para dizer: “Não. Nós não vamos pagar pela sua crise”.
Esse slogan começou na Itália em 2008. Ricocheteou para Grécia, França, Irlanda e finalmente chegou a esta milha quadrada onde a crise começou. 
“Por que eles estão protestando?”, perguntam-se os confusos comentaristas da TV. Enquanto isso, o mundo pergunta: “por que vocês demoraram tanto? A gente estava querendo saber quando vocês iam aparecer.” E, acima de tudo, o mundo diz: “bem-vindos”. 
Muitos já estabeleceram paralelos entre o Ocupar Wall Street e os assim chamados protestos antiglobalização que conquistaram a atenção do mundo em Seattle, em 1999. Foi a última vez que um movimento descentralizado, global e juvenil fez mira direta no poder das corporações. Tenho orgulho de ter sido parte do que chamamos “o movimento dos movimentos”. 
Mas também há diferenças importantes. Por exemplo, nós escolhemos as cúpulas como alvos: a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o G-8. As cúpulas são transitórias por natureza, só duram uma semana. Isso fazia com que nós fôssemos transitórios também. Aparecíamos, éramos manchete no mundo todo, depois desaparecíamos. E na histeria hiper-patriótica e nacionalista que se seguiu aos ataques de 11 de setembro, foi fácil nos varrer completamente, pelo menos na América do Norte. 
O Ocupar Wall Street, por outro lado, escolheu um alvo fixo. E vocês não estabeleceram nenhuma data final para sua presença aqui. Isso é sábio. Só quando permanecemos podemos assentar raízes. Isso é fundamental. É um fato da era da informação que muitos movimentos surgem como lindas flores e morrem rapidamente. E isso ocorre porque eles não têm raízes. Não têm planos de longo prazo para se sustentar. Quando vem a tempestade, eles são alagados. 
Ser horizontal e democrático é maravilhoso. Mas esses princípios são compatíveis com o trabalho duro de construir e instituições que sejam sólidas o suficiente para aguentar as tempestades que virão. Tenho muita fé que isso acontecerá. 
Há outra coisa que este movimento está fazendo certo. Vocês se comprometeram com a não-violência. Vocês se recusaram a entregar à mídia as imagens de vitrines quebradas e brigas de rua que ela, mídia, tão desesperadamente deseja. E essa tremenda disciplina significou, uma e outra vez, que a história foi a brutalidade desgraçada e gratuita da polícia, da qual vimos mais exemplos na noite passada. Enquanto isso, o apoio a este movimento só cresce. Mais sabedoria. 
Mas a grande diferença que uma década faz é que, em 1999, encarávamos o capitalismo no cume de um boom econômico alucinado. O desemprego era baixo, as ações subiam. A mídia estava bêbada com o dinheiro fácil. Naquela época, tudo era empreendimento, não fechamento.
Nós apontávamos que a desregulamentação por trás da loucura cobraria um preço. Que ela danificava os padrões laborais. Que ela danificava os padrões ambientais. Que as corporações eram mais fortes que os governos e que isso danificava nossas democracias. Mas, para ser honesta com vocês, enquanto os bons tempos estavam rolando, a luta contra um sistema econômico baseado na ganância era algo difícil de se vender, pelo menos nos países ricos.
Dez anos depois, parece que já não há países ricos. Só há um bando de gente rica. Gente que ficou rica saqueando a riqueza pública e esgotando os recursos naturais ao redor do mundo.
A questão é que hoje todos são capazes de ver que o sistema é profundamente injusto e está cada vez mais fora de controle. A cobiça sem limites detona a economia global. E está detonando o mundo natural também. Estamos sobrepescando nos nossos oceanos, poluindo nossas águas com fraturas hidráulicas e perfuração profunda, adotando as formas mais sujas de energia do planeta, como as areias betuminosas de Alberta. A atmosfera não dá conta de absorver a quantidade de carbono que lançamos nela, o que cria um aquecimento perigoso. A nova normalidade são os desastres em série: econômicos e ecológicos.
Estes são os fatos da realidade. Eles são tão nítidos, tão óbvios, que é muito mais fácil conectar-se com o público agora do que era em 1999, e daí construir o movimento rapidamente.
Sabemos, ou pelo menos pressentimos, que o mundo está de cabeça para baixo: nós nos comportamos como se o finito – os combustíveis fósseis e o espaço atmosférico que absorve suas emissões – não tivesse fim. E nos comportamos como se existissem limites inamovíveis e estritos para o que é, na realidade, abundante – os recursos financeiros para construir o tipo de sociedade de que precisamos.
A tarefa de nosso tempo é dar a volta nesse parafuso: apresentar o desafio à falsa tese da escassez. Insistir que temos como construir uma sociedade decente, inclusiva – e ao mesmo tempo respeitar os limites do que a Terra consegue aguentar.
A mudança climática significa que temos um prazo para fazer isso. Desta vez nosso movimento não pode se distrair, se dividir, se queimar ou ser levado pelos acontecimentos. Desta vez temos que dar certo. E não estou falando de regular os bancos e taxar os ricos, embora isso seja importante.
Estou falando de mudar os valores que governam nossa sociedade. Essa mudança é difícil de encaixar numa única reivindicação digerível para a mídia, e é difícil descobrir como realizá-la. Mas ela não é menos urgente por ser difícil.
É isso o que vejo acontecendo nesta praça. Na forma em que vocês se alimentam uns aos outros, se aquecem uns aos outros, compartilham informação livremente e fornecem assistência médica, aulas de meditação e treinamento na militância. O meu cartaz favorito aqui é o que diz “eu me importo com você”. Numa cultura que treina as pessoas para que evitem o olhar das outras, para dizer “deixe que morram”, esse cartaz é uma afirmação profundamente radical.
Algumas ideias finais. Nesta grande luta, eis aqui algumas coisas que não importam:
Nossas roupas.
Se apertamos as mãos ou fazemos sinais de paz.
Se podemos encaixar nossos sonhos de um mundo melhor numa manchete da mídia.
E eis aqui algumas coisas que, sim, importam:
Nossa coragem.
Nossa bússola moral.
Como tratamos uns aos outros.
Estamos encarando uma luta contra as forças econômicas e políticas mais poderosas do planeta. Isso é assustador. E na medida em que este movimento crescer, de força em força, ficará mais assustador. Estejam sempre conscientes de que haverá a tentação de adotar alvos menores – como, digamos, a pessoa sentada ao seu lado nesta reunião. Afinal de contas, essa será uma batalha mais fácil de ser vencida.
Não cedam a essa tentação. Não estou dizendo que vocês não devam apontar quando o outro fizer algo errado. Mas, desta vez, vamos nos tratar uns aos outros como pessoas que planejam trabalhar lado a lado durante muitos anos. Porque a tarefa que se apresenta para nós exige nada menos que isso.
Tratemos este momento lindo como a coisa mais importante do mundo. Porque ela é. De verdade, ela é. Mesmo.


* Naomi Klein é escritora, autora dos livros 'Sem Logo: a tirania das marcas em um planeta vendido' e, mais recentemente, de 'Cercas e Janelas: na linha de frente do debate sobre a globalização'. Seu último livro é 'A Doutrina do Choque'. Discurso originalmente publicado no The Nation.

domingo, 2 de outubro de 2011

NEUROPOLIS

  Sabe essas ideias que quando a gente vê alguém realizando nos ocorre a pergunta: “puxa como é que não pensei nisso antes?” Pois é... me deparei com uma dessas outro dia. Milton Nascimento fez, em parceria com Tunai, uma bela canção sobre esse assunto – “certas canções” (“certas canções que ouço / cabem tão dentro de mim / que perguntar carece / como não fui eu que fiz...”) –. Mas a ideia a qual me refiro era tão boa que mesmo antes de vê-la realizada já pressenti sua qualidade. Estou me referindo ao projeto “neuropolis” de autoria do músico e compositor paulista Lívio Tragtenberg. A palavra é escrita assim sem o acento agudo no primeiro ‘o’, mas é para ser pronunciada como se tivesse. Excentricidade do autor.

  Nesse projeto Lívio pôs no estúdio artistas, músicos e compositores que fazem das ruas de São Paulo o seu espaço de exibição. Claramente se coloca já de cara um grande problema: que unidade é possível dentro de uma tremenda diversidade que esses músicos encarnam? Pra se ter uma ideia do arco musical de Sampa representado no projeto, temos desde os emboladores Sonhador e Peneira à Yuko Ogura, musicista e professora de koto e sanguen, instrumentos tradicionais japoneses. Porém, não obstante a dificuldade, Lívio consegue não só produzir um clima de unidade no trabalho, como consegue interessantes encontros, com excelentes resultados timbrísticos.

  A praça pública, já sabemos, é o espaço, como diria o mestre russo Mikail Bakhtin, do vozerio e da polifonia. Ele é o lugar do multifacetado, do divergente, ou numa última palavra: da democracia. Ao contrário das mídias, no seu viés corporativo, o espaço da rua possibilita a emergência das singularidades e das experiências, estabelecendo um fluxo vital estético-sonoro tão plural quanto plural somos nós, seres humanos. Desde tempos imemoriais temos músicos ambulantes a transitar pela corte ou pelas cidades fazendo a crônica do tempo, ou, trabalhando a soldo de algum poderoso, tecendo loas em sua honraria. Comum também era a presença do poeta-cantor exercendo o puro e simples entretenimento.

  O termo “neuropolis”, explica o autor, está intimamente ligado a ideia de um fluxo nervoso que atravessa a polis e que lhe dá organicidade. São esses nervos que dão consistência vital e unidade ao complexo urbano citadino. Cidade é tumulto, troca, experiência e vitalidade. É música e paisagem sonora. E desse nervosismo e dessa pressa é que os músicos-artistas-compositores extraem sua matéria e a devolve em forma de sons e canções. O poeta-cantor é um fio e dessa forma ele dá estrutura nervosa ao caos-cosmo urbano.

  Os temas vão se seguindo nos dando o sabor da experiência estética da rua. Lívio foi muito feliz nisso: ele conseguiu, e obviamente não é só mérito seu, transpor para dentro do estúdio toda graça, dinâmica e leveza das apresentações da via pública. Destacaremos aqui apenas algumas faixas. O disco é aberto com um delicioso híbrido de samba e carimbó “aforrozado”, em cujo título já se encontra as marcas da mestiçagem que vai dar o tom do projeto: “Nega samurai”. Em “Lombada, curva: pare” Lívio se junta ao cantador Sonhador para compor um coco cujo tema é a percepção da cidade de São Paulo que tem um migrante nordestino. Diz a letra: “a maior agitação se vê na praça da Sé / mendigos e cachaceiros, fazendo o maior banzé / turista tirando foto e crente falando rouco / uns dizem que aqui é bom, outros diz: lugar de louco”.

   “Pajaro Choguy” é um tema tradicional paraguaio muito comovente. Ela se encaixa num tipo de conto que Câmara Cascudo definiu como um conto de exemplo. Diz a letra que uma antiga lenda conta a história de um indiozinho que estando em cima de uma árvore, se assustou com o grito da própria mãe caiu e morreu. Mas por um estranho sortilégio, ao se encontrar nos braços da mãe se transformou num pássaro choguy. É uma melodia comovente interpretada por Ruben Vera, paraguaio, e Frank, brasileiro do Mato Grosso do Sul.
A mistura é caleidoscópica e estonteante, mas dá certo. Os sotaques se misturam e se destilam compondo um mosaico afirmativo da cultura musical urbana da maior metrópole brasileira: São Paulo. O projeto sinaliza a permanência de uma longeva tradição de cantares públicos que no passado foi dos trovadores na França, dos griôs africanos e dos cantadores árabes. Saudemos!

sábado, 17 de setembro de 2011

PLANO NACIONAL DE CULTURA


 Na próxima quarta-feira, 21 de setembro, o Ministério da Cultura abrirá consulta pública para receber sugestões às metas propostas para o Plano Nacional de Cultura (PNC), instituído pela Lei nº 12.343/2010.  O objetivo da consulta é  receber contribuições da sociedade civil e de gestores públicos para o processo de construção das metas que nortearão as políticas públicas no campo cultural, no período de dez anos de vigência do PNC.
A consulta, disponível até o dia 20 de outubro, reafirma o compromisso do MinC com os processos democráticos, participativos e abertos com relação à formulação de políticas culturais.
Logo após o período da consulta pública, representantes do MinC e do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) – órgão colegiado integrante da estrutura básica do Ministério da Cultura – se reunirão para a consolidação final das metas, as quais serão publicadas em dezembro próximo.
Para enviar contribuições ao PNC, acesse aqui.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Novos bancos comunitários...

Os bancos comunitários vão se expandindo cada vez mais, e as histórias de sucesso seguem no mesmo rumo. No passado, nos tempos sombrios de FHC, eles chegaram a ter dificuldades, pois estavam fazendo circular moedas próprias, e como se sabe, cunhar moeda é um monopólio do estado. Só que deixava-se de perceber o enorme potencial de crescimento local, além de outros tantos dividendos, tais como o empoderamento comunitário, e a concomitante consciência das possibilidades cidadãs que daí advinham. Cidade de Deus, no Rio; Saracuruna, em Caxias e Preventório, em Niterói, se somam a outras tantas comunidades Brasil afora que adotaram essa iniciativa. Vida longa aos Bancos comunitários.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Todos os caminhos levam a Roma. O Papa e a pedofilia...


Do Terra notícias


     Os dirigentes da associação SNAP, orientados pelos advogados da ONG americana "Centro para Direitos Constitucionais", entraram com uma ação para que o Papa seja julgado por "responsabilidade direta e superior por crimes contra a humanidade por estupro e outras violências sexuais cometidas em todo o mundo".
   A organização acusa o chefe da Igreja católica de "ter tolerado e ocultado sistematicamente os crimes sexuais contra crianças em todo o mundo". À queixa acrescentaram 10.000 páginas de documentação de casos de pedofilia. Uma associação americana de vítimas de padres pedófilos anunciou nesta terça-feira ter apresentado uma queixa ante o Tribunal Penal Internacional (TPI) contra o Papa Bento 16 e outros dirigentes da Igreja católica por crimes contra a humanidade.
    A SNAP possui membros nos Estados Unidos, Alemanha, Holanda e Bélgica, quatro países muito afetados pelo grande escândalo de pedofilia que envolve a Igreja. "Crimes contra a dezenas de milhares de vítimas, a maioria crianças, foram escondidos pelos líderes nos mais altos níveis do Vaticano. Neste caso, todos os caminhos levam a Roma", declarou a advogada Pamela Spees. Os bispos e, em alguns casos, o próprio Vaticano rejeitou ou ignorou muitas das queixas das vítimas de padres pedófilos. O escândalo desacreditou a Igreja em vários países na Europa. A SNAP não acredita nesse desejo de transparência e justiça, e não moderou suas acusações.
O Papa Bento 16 expressou sua vergonha e pediu desculpas, apelando para a tolerância zero contra os pedófilos. Ele também pediu aos bispos do mundo, que têm a responsabilidade primária sobre seus sacerdotes, a plena cooperação com os tribunais criminais.



domingo, 11 de setembro de 2011

Qual 11 de setembro??


  Em um passado recente éramos todos, de alguma forma, reféns das informações que circulavam na grande mídia. Os canais paralelos eram, não obstante sua importância, muito limitados a abrangiam proporcionalmente poucas pessoas. As novas tecnologias de comunicação possibilitam uma menor assimetria na medida em que faz  de todo consumidor de informação um produtor, ao menos potencialmente. 
  Dia 11 de setembro é uma data que a grande mídia elege como o dia que devemos todos relembrar os atentados contra as torres gêmeas na cidade de Nova York. Obviamente que foi um acontecimento de grande magnitude e que deve ser lembrado por todos. Mas ao mesmo tempo em que comemora-se (no sentido de lembrar junto) essa ocorrência elide-se, ou tenta-se elidir o que representa essa mesma data para um país vizinho, o Chile, ou mesmo para todo o continente visto que a incursão estadunidense era continental. Nesse dia o Chile mergulhou em uma grande noite escura, e seu presidente foi deposto e assassinado por uma ação militar patrocinada pelo governo dos EUA. Esse mesmo país, cujo estado terrorista tem sido denunciado até mesmo por pessoas lá nascidas,  que chora as vítimas de um atentado terrorista supostamente praticado por grupos fundamentalistas muçulmanos, teria que fazer uma profunda reflexão do que representa no cenário mundial. Recentemente o crítico Herold Bloom nos alertou com relação as similitudes que envolvem os EUA hoje e o ambiente nazista da Alemanha pré Hitler. Mas, parece que ao contrário de uma reflexão que os leve a compreender que a sanha belicista encetada por eles acaba por levar todo o mundo, e eles mesmos, a instabilidade e que isso só interessa a poucos grupos privados, eles preferem fazer crescer movimentos como o direitista tea party, e outros grupos direitistas que estão dentro do partido republicano.
 Para que comemoremos juntos esse dia 11 de setembro, nada melhor do que este vídeo do cineasta inglês Ken Loach. Vejam:

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Rede da Legalidade faz 50 anos

  
  Em agosto passado foi comemorado o aniversário de 50 anos da Rede da Legalidade, episódio este da maior importância da história recente do Brasil. Apesar de sua grande envergadura ele não é muito falado e grande parte dos brasileiros não têm notícia do que efetivamente se deu naquele ano de 1961. Importante também é perceber o papel desempenhado pelos então atores da cena histórica. Estava lá, naquele momento, a odiosa figura de Tancredo Neves, cuja herança política se encontra hoje nas mãos de seu neto Aécio Neves. Tancredo conspirou como pode em favor dos interesses reacionários na época, agindo como porta-voz dos militares golpistas, que por sua vez agiam - como depois ficou evidenciado no golpe de 64 -, sintonizados com os interesses estadunidenses. Tancredo tinha pretensões de se tornar o primeiro-ministro num parlamentarismo que esvaziaria o poder do presidente João Goulart. Os militares golpistas fizeram o que foi possível para em 1961 impedir sua posse, mas a rede da legalidade liderada por Brizola foi um impedimento não previsto pelos golpistas.
 Em 1985 lá estava de novo Tancredo fingindo ser um dos articuladores das diretas, quando na verdade articulava para ser o presidente numa eleição indireta. Conseguiu o que queria, mas o destino lhe roubou o cetro. Ganhou mas não levou. 
 Segue abaixo um documentário sobre a rede da legalidade em dois capítulos. Vejam:


terça-feira, 30 de agosto de 2011

"LÁ VINHA O BONDE NO SOBE E DESCE LADEIRA"

Era uma vez um lugar no coração de uma grande cidade. Mas seu tempo era outro, seu fluxo era outro e seu recorte geográfico já avisava aos que ali se aventuravam que se tratava de um lugar diferente, para o qual seria necessário um modo também diferente de percorrê-lo. Havia nesse lugar muita dança, muita música e de todos os recantos da cidade acorriam pessoas dispostas a penetrar naquela atmosfera. A comungar com ela. Era, sem dúvida, muito sedutor.


            Além das ladeiras, curvas, casario do século passado e outras idiossincrasias, havia a presença de um bonde. Este sim parecia que vinha de um tempo sem tempo, como o tempo da poesia, do sonho, ou da música. Talvez o “tempo dos quintais”, tempo que, como diz o poeta do cancioneiro popular, havia fadas e bondes, e nesse bonde havia sempre um anjo pra guiar, e outro pra dar lugar, pra quem quisesse sentar... este bonde cumpria dois tipos de itinerários: em um, ele saia de um ponto físico material e chegava em outro, também físico e material; em outro, ele nos fazia percorrer outro tipo de roteiro. Menos material e mais espiritual, seja lá o que possa significar esta palavra. Ele nos levava diretamente a um país da delicadeza perdida, para citar outro poeta do nosso cancioneiro. Por um momento poderíamos estar como que encantados pela poesia que ele emanava e nos sentir em um país cordial e generoso.

            Este bonde, assim como o do poeta Carlos Drummond de Andrade no seu poema das sete faces, também passava cheio de pernas. E eram também pernas pretas, amarelas, brancas, etc. isto porque não acorriam apenas pessoas da cidade para este lugar, mas gente do mundo todo. Poderíamos até pensar que o mundo vivia em paz. Que os homens enfim tinham abandonado suas ganâncias, loucuras e vontade de subjugar o outro homem. Mas não era! Era que esse bondinho nos deixava tão terno e tão amolecido (como o conhaque do poeta mineiro), que por um átimo de tempo tínhamos do mundo outras notícias. Mas tratava-se de sonho, e sonho, como nos diz um outro poeta Calderón, sonhos são...

            Por estas ladeiras de tanto sobes e desces o motorneiro parava a orquestra um minuto. Largava a batuta e contava casos de outros tempos e outras campanhas. Campanhas contra a privatização, campanha contra o desmantelamento daquele mais que meio de transporte, um verdadeiro símbolo de que outro mundo é possível, outra forma de se relacionar é possível.  Mas não era só poesia e música a serem transportadas por essas ladeiras, curvas e paralelepípedos. Lá estavam os próprios poetas. Lá estava Bandeira a pedir em oração que a própria santa, a Teresa, olhasse pelos que ali moravam: “Santa Teresa olhai por nós / moradores de Santa Teresa”. Lá estava também Drª Nise da Silveira, com Bandeira, a discutir filosofia no Curvelo... enquanto o bonde não vinha.
            Assim como Milton Nascimento em sua bela canção “conversando no bar”, eu também levei um susto imenso: o sonho, a música e a poesia que eram o bondinho de um lugar de verdade chamado Santa Teresa descarrilou e se chocou contra a dureza e o concreto da indiferença dos marqueses de terras perdidas. Chocou-se também contra a negligência e a mesquinhez. Chocou-se contra a aspereza das almas sebosas cujo afã acumulador as fazem cegas.

            No momento em que escrevo essas linhas, não ouço, compondo a paisagem sonora do meu lugar, os sons do bom e velho bondinho. É um silêncio que incomoda e entristece. Mas torçamos e lutemos, sobretudo, para que esse silêncio seja apenas momentâneo, e nesse sentido conclamo toda cidade a se unir e se solidarizar com o bairro de Santa Teresa e seus moradores, para que o descaso e a mesquinhez não se tornem a regra e triunfem sobre a poesia e o sonho.  Vivo estarão na nossa memória o motorneiro-maestro-anjo Nelson e os demais passageiros que foram vitimados no último sábado dia 27 de agosto, ao cair da tarde.