segunda-feira, 31 de outubro de 2011

DE PALÍNDROMOS E CANÇÕES



          Em um verso inesquecível da música popular brasileira, na canção “Clube da esquina nº2”, o letrista Márcio Borges diz que “de tudo se faz canção”. E é mesmo! Nada que é humano escapa aos cronistas e letristas de nossa MPB. Talvez tenhamos apenas que lamentar o fato de não haver um maior número de experimentações de temas e formas para se compor letras de canções em tempos mais recentes. É claro, por outro lado, que muito se fez nesse sentido e podemos contar em nosso cancioneiro com um repertório de temas muito variados. Alguns até diriam, fazendo eco ao vulgo, que estou chorando de barriga cheia... Pode ser!
            Mas de toda essa trama de assuntos que inspiram os nossos artesãos da palavra cantada, uma me chama atenção para esta breve nota/comentário: é a canção “Relp” de José Miguel Wisnik. Nela o autor, um experimentado nas lides literárias, pois é professor de Literatura na USP, escritor e ensaísta de mancheia, constrói um ambiente um tanto fantástico – como o de “Alice no país das maravilhas” –. Ambiente labiríntico e enigmático no qual as palavras refletidas ganham novo colorido e se espraiam tal qual um cristal a refratar sentidos. Tudo isso em uma atmosfera infantil, ou, para ser mais preciso, infanto-juvenil.
            Esta situação “espelhar” ou refletida para a qual a canção nos remete é elaborada primeiramente com o recurso do palíndromo, que para quem não conhece, é uma construção escrita na qual a leitura da esquerda para a direita, que é a nossa forma normal de leitura, se iguala a leitura feita da direita para a esquerda. A palavra “arara” é um bom exemplo. Só que um bom palíndromo é feito com frases, e para além da brincadeira e do jogo “espelhado”, ele também tem, quando bem feito, uma carga de deslocamento de sentido muito interessante.
            No início da canção, na gravação feita pelo próprio Wisnik, Jussara Silveira e Arnaldo Antunes, este último, com sua inconfundível voz grave nos diz o primeiro dos palíndromos que vão se desdobrar durante a canção: “lá vou eu em meu eu oval”. Ressoa bastante psicodélico, não? O que seria um eu oval?  A frase é dita sem nenhum acompanhamento instrumental, a título de introdução mesmo, como que para nos situar dentro da atmosfera onírica a qual a canção irá em breve nos conduzir.  Em seguida instaura-se o ambiente “Alice nos país das maravilhas” quando ele diz: “a menina olha no espelho pelo ralo e diz oi rato otário, que que tu faz aí?” (colocarei em negrito os palíndromos do versos). Mas quem responde não é o rato e sim a própria voz da menina que na condição de eco, e olha aí a situação “espelhar” de novo, diz “eco vejo hoje você.
            A canção segue desvelando a situação psicológica da menina: “a menina fica assim, meio assim, quer ser cor e ser ocres”. E “num repente começa a sussurrar a rezar, uma reza que mais parece um rap / um help pro céu um salmo / ó mãe tu era réu te amo / ó mãe tu era réu te amo”. Aqui o clima deriva para uma situação psicanalítica, ou então, como disse o próprio Wisnik, para um tema do escritor russo Dostoievski. A nossa “Alice” fica ali, “rindo e polindo / o que parece ter dentro e fora de si / ou então construindo um lindo palíndromo (e aqui a canção torna-se auto-referente) / outro tesouro de ouro e marfim / que mima a mina e anima a mim / num breque sem fim (e aqui “breque” poderia ser uma referência consciente ou inconsciente ao pintor cubista Georges Braque) / de um samba tão velho que bate no espelho e se vê no cristal / ela faz o seu e o meu carnaval cantando assim: só dote e dádiva é a vida de todos... o ambiente agora se abre para um gozo dionisíaco no qual o coletivo “todos” é indício de uma totalidade que exercita o pleno direito ao prazer e a um gozo comunal proporcionado pelo carnaval, festa do des-limite e do prazer orgiástico.
            A canção palíndromo de José Miguel Wisnik, como é próprio da linguagem dos grandes poetas, pode ser explorada e tateada milimetricamente até nos cansarmos de encontrar nela os múltiplos sentidos de sua polissemia. E, como disse o próprio Wisnik comentando as relações entre canção popular e literatura no Brasil: “isso não é pouca coisa”.

Os. Os palíndromos contidos na canção foram construídos pela filha do compositor, cujo nome no momento me escapa.

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