Por Ricardo Moreno
Acredito que
todo mundo que escreve sente no íntimo uma curiosidade sobre quem é e como
reage seu leitor ante o texto seu. Imagino que isso aconteça tanto com
escritores consagrados quanto com simples rascunhadores de notas musicais como
este que vos escreve. A curiosidade se desfaz um pouco quando algum leitor sai
de sua condição silenciosa e vem para uma área que o torna visível para o
escritor. Vez em quando isso acontece, e aconteceu recentemente com o e-mail
que recebi do arguto leitor Nilton Maia que me sugeriu que tratasse nessa
coluna de um dos grandes nomes da nossa música: Sérgio Ricardo.
Meu
primeiro encontro com Sérgio Ricardo foi numa calçada em Recife, lá pelos idos
de 1981. Não exatamente com o homem Sérgio Ricardo, mas com sua obra.
Tratava-se de um LP exposto à venda, e nesse tempo eu era ávido frequentador de
sebos – na verdade ainda sou –. Estava eu e um amigo, o Haroldo, e foi este na
verdade quem adquiriu a preciosidade. Fiquei tão empolgado na volta pra casa
lendo os textos que acompanhavam o disco que ele resolveu me presentear.
Tratava-se do LP (que até hoje possuo) sem nome de 1973. Em pleno (des) governo
da ditadura Médici, Sérgio cantava logo na primeira faixa com sua voz de tiro
certeiro: “olho aberto ouvido atento e a
cabeça no lugar / do canto da boca escorre metade do meu cantar / eis o lixo do
meu canto que é permitido escutar / fala / olha o vazio nas almas olha um
violeiro de alma vazia...” e nessa batida seguiam os versos cortantes de
mal-dizer endereçados aos que se julgavam donos de tudo.
Há
nesse disco uma inesperada parceria com Glauber Rocha, na faixa “Antonio das
Mortes”. A canção foi criada para um personagem do filme Deus e o Diabo na terra do sol, de 1964, e contém versos que
Glauber recolheu no sertão nordestino: “Se
entrega Corisco / eu não me entrego não / não me entrego ao tenente / não me
entrego ao capitão / só me entrego na morte / de parabelo na mão”. O disco
é todo composto, com exceção dessa faixa com Glauber, por Sérgio Ricardo, e
isso de certa forma aponta para uma característica sua. Nunca esteve
definitivamente ligado a grupos. Esteve na bossa-nova, fez música de protesto,
se aproximou da musicalidade nordestina através de Glauber, mas manteve-se numa
trilha individual sempre a parte.
Sérgio
tem uma carreira artística que pode, sem chance de erro, ser chamada de plural.
Fez cinema (premiado inclusive); cantou em boate, ainda com o nome de batismo
João Mansur Lufti; foi ator de novela, despertando suspiro como um verdadeiro
galã; fez trilhas sonoras para filmes; enveredou com sucesso pelas artes
plásticas e participou dos memoráveis e importantes festivais da década de
1960. Em 1967, por exemplo, protagonizou aquela cena que se tornou histórica
para todo o sempre, quando impedido pelas vaias do público de cantar a sua
música “Beto bom de bola”, quebrou seu violão e o atirou no público.
Respondendo
recentemente sobre esse acontecimento no documentário “Uma noite em 67”, Sérgio
afirmou com toda simplicidade que jamais faria aquilo de novo. Foi apenas um
ato impensado. Recorre à psicologia para dizer que se tratou naquele momento de
um animal acuado, que no desespero do apuro partiu para a agressão. Curioso que
a música que ganhou o primeiro lugar neste festival, a canção “Ponteio”, de Edu
Lobo e Capinam dizia no refrão, quase que dialogando com Sérgio: “quem me dera agora eu tivesse uma viola pra
cantar...”. Que ironia! E mais uma curiosidade, já de cunho psicanalítico,
sobre esse ocorrido insólito é uma história que dá conta que o pai de Sérgio, Abdala
Lufti, certa feita quebrou seu alaúde, que ele tocava amadoristicamente, por
conta de que toda vez que ele tocava recebia uma notícia de morte de sua terra
natal, o Líbano.
A bossa-nova
foi a porta de entrada para que Sérgio Ricardo pudesse desenvolver seu
potencial criador. Foi quando veio ao Rio de Janeiro (Sérgio é paulista de
Marília) ainda na década de 1950 que ele, tocando em boates na noite em
Copacabana, fez contato com Tom Jobim, João Gilberto e outros integrantes do
movimento carioca, o que acabou possibilitando que a cantora Maysa fizesse a
gravação de sua canção “Buquê de Isabel”. Nesta canção já se percebe um veio
que o autor cultivou durante toda sua carreira: a preocupação com o sofrimento
do outro. Com o passar do tempo essa perspectiva iria se desenvolver e se
politizar de modo que ainda no início da década de 1960 Sérgio parte para uma
linha composicional e até mesmo existencial cuja pesquisa musical situava-se
numa perspectiva mais popular, buscando no universo sonoro do povo elementos a
serem utilizados na sua obra. Nesse sentido ele se aproxima do ideário
estético-musical do CPC – Centro Popular de Cultura, e se aproxima de Chico de
Assis, um dos fundadores do movimento. Dessa forma, Sérgio torna-se, como ele mesmo
diz, um dissidente do movimento bossanovista e abandona “os valores
pequeno-burgueses de Ipanema e aquele negócio de muito sorriso, amor e flor”.
Em 2008 saiu
pela gravadora biscoito fino o cd “Ponto de partida”, no qual ele regravou
composições feitas em quase 60 anos de carreira. A regravação atendeu a
critérios de re-elaboração na qual atuam um time de músicos jovens de excelente
nível, que criaram um ambiente harmônico e timbrístico muito interessante. Em
2012 este artista multifacetado completará 80 anos, e quem pensa que ele está
planejando se aposentar está completamente enganado. Muitas comemorações estão
sendo programadas para este octogenário militante de boa cepa. Salve Sérgio!
Nenhum comentário:
Postar um comentário