quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

SÉRGIO RICARDO, UM GUERREIRO DA CULTURA BRASILEIRA


Por Ricardo Moreno

Acredito que todo mundo que escreve sente no íntimo uma curiosidade sobre quem é e como reage seu leitor ante o texto seu. Imagino que isso aconteça tanto com escritores consagrados quanto com simples rascunhadores de notas musicais como este que vos escreve. A curiosidade se desfaz um pouco quando algum leitor sai de sua condição silenciosa e vem para uma área que o torna visível para o escritor. Vez em quando isso acontece, e aconteceu recentemente com o e-mail que recebi do arguto leitor Nilton Maia que me sugeriu que tratasse nessa coluna de um dos grandes nomes da nossa música: Sérgio Ricardo.
            Meu primeiro encontro com Sérgio Ricardo foi numa calçada em Recife, lá pelos idos de 1981. Não exatamente com o homem Sérgio Ricardo, mas com sua obra. Tratava-se de um LP exposto à venda, e nesse tempo eu era ávido frequentador de sebos – na verdade ainda sou –. Estava eu e um amigo, o Haroldo, e foi este na verdade quem adquiriu a preciosidade. Fiquei tão empolgado na volta pra casa lendo os textos que acompanhavam o disco que ele resolveu me presentear. Tratava-se do LP (que até hoje possuo) sem nome de 1973. Em pleno (des) governo da ditadura Médici, Sérgio cantava logo na primeira faixa com sua voz de tiro certeiro: “olho aberto ouvido atento e a cabeça no lugar / do canto da boca escorre metade do meu cantar / eis o lixo do meu canto que é permitido escutar / fala / olha o vazio nas almas olha um violeiro de alma vazia...” e nessa batida seguiam os versos cortantes de mal-dizer endereçados aos que se julgavam donos de tudo.
            Há nesse disco uma inesperada parceria com Glauber Rocha, na faixa “Antonio das Mortes”. A canção foi criada para um personagem do filme Deus e o Diabo na terra do sol, de 1964, e contém versos que Glauber recolheu no sertão nordestino: “Se entrega Corisco / eu não me entrego não / não me entrego ao tenente / não me entrego ao capitão / só me entrego na morte / de parabelo na mão”. O disco é todo composto, com exceção dessa faixa com Glauber, por Sérgio Ricardo, e isso de certa forma aponta para uma característica sua. Nunca esteve definitivamente ligado a grupos. Esteve na bossa-nova, fez música de protesto, se aproximou da musicalidade nordestina através de Glauber, mas manteve-se numa trilha individual sempre a parte.
            Sérgio tem uma carreira artística que pode, sem chance de erro, ser chamada de plural. Fez cinema (premiado inclusive); cantou em boate, ainda com o nome de batismo João Mansur Lufti; foi ator de novela, despertando suspiro como um verdadeiro galã; fez trilhas sonoras para filmes; enveredou com sucesso pelas artes plásticas e participou dos memoráveis e importantes festivais da década de 1960. Em 1967, por exemplo, protagonizou aquela cena que se tornou histórica para todo o sempre, quando impedido pelas vaias do público de cantar a sua música “Beto bom de bola”, quebrou seu violão e o atirou no público.
Respondendo recentemente sobre esse acontecimento no documentário “Uma noite em 67”, Sérgio afirmou com toda simplicidade que jamais faria aquilo de novo. Foi apenas um ato impensado. Recorre à psicologia para dizer que se tratou naquele momento de um animal acuado, que no desespero do apuro partiu para a agressão. Curioso que a música que ganhou o primeiro lugar neste festival, a canção “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam dizia no refrão, quase que dialogando com Sérgio: “quem me dera agora eu tivesse uma viola pra cantar...”. Que ironia! E mais uma curiosidade, já de cunho psicanalítico, sobre esse ocorrido insólito é uma história que dá conta que o pai de Sérgio, Abdala Lufti, certa feita quebrou seu alaúde, que ele tocava amadoristicamente, por conta de que toda vez que ele tocava recebia uma notícia de morte de sua terra natal, o Líbano.
A bossa-nova foi a porta de entrada para que Sérgio Ricardo pudesse desenvolver seu potencial criador. Foi quando veio ao Rio de Janeiro (Sérgio é paulista de Marília) ainda na década de 1950 que ele, tocando em boates na noite em Copacabana, fez contato com Tom Jobim, João Gilberto e outros integrantes do movimento carioca, o que acabou possibilitando que a cantora Maysa fizesse a gravação de sua canção “Buquê de Isabel”. Nesta canção já se percebe um veio que o autor cultivou durante toda sua carreira: a preocupação com o sofrimento do outro. Com o passar do tempo essa perspectiva iria se desenvolver e se politizar de modo que ainda no início da década de 1960 Sérgio parte para uma linha composicional e até mesmo existencial cuja pesquisa musical situava-se numa perspectiva mais popular, buscando no universo sonoro do povo elementos a serem utilizados na sua obra. Nesse sentido ele se aproxima do ideário estético-musical do CPC – Centro Popular de Cultura, e se aproxima de Chico de Assis, um dos fundadores do movimento. Dessa forma, Sérgio torna-se, como ele mesmo diz, um dissidente do movimento bossanovista e abandona “os valores pequeno-burgueses de Ipanema e aquele negócio de muito sorriso, amor e flor”.
Em 2008 saiu pela gravadora biscoito fino o cd “Ponto de partida”, no qual ele regravou composições feitas em quase 60 anos de carreira. A regravação atendeu a critérios de re-elaboração na qual atuam um time de músicos jovens de excelente nível, que criaram um ambiente harmônico e timbrístico muito interessante. Em 2012 este artista multifacetado completará 80 anos, e quem pensa que ele está planejando se aposentar está completamente enganado. Muitas comemorações estão sendo programadas para este octogenário militante de boa cepa. Salve Sérgio!

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