terça-feira, 26 de julho de 2011

CHICO 2011

Por Ricardo Moreno

   O lançamento de um disco, ou livro, do Sr. Francisco Buarque de Holanda, é por si, para a tristeza e irritação do cantor Lobão, um acontecimento cultural de grande magnitude. Refiro-me ao roqueiro pelo fato dele ter recentemente atacado a obra de Chico Buarque com um agastamento (bom esse termo, hein...) que me causou espécie.
O disco foi lançado no último dia 22 de julho com uma estratégia diferente que envolvia diretamente a internet. A gravadora Biscoito Fino iniciou as vendas antecipadas no dia 22 de junho, exatamente um mês antes do lançamento, e possibilitou aos compradores o acesso a momentos íntimos das gravações. Aqueles momentos que outrora todo fã ficava imaginando e especulando como teria sido. Pois então, todos os dias um novo vídeo era postado com trechos de músicas ou diálogos entre Chico e alguns integrantes do processo. Tem em particular um vídeo em que Chico dá boas risadas comentando as cartas virtuais que são enviadas ao site “Chico bastidores”, criado especialmente para o lançamento, nas quais alguns declaravam morrer de amor pelo compositor, e outras que o “espinafravam”. Enfim, coisas do mundo virtual. “Não sabia que o jogo era tão pesado”, disse o cantor.
Recentemente perguntaram a Chico Buarque por que ele não fazia mais canções como aquelas de antigamente. Ele respondeu que a razão era porque não precisava mais, pois as que tinham que ser compostas, já o tinham sido. Ele parece ser desses criadores que não querem ficar presos ao passado, mesmo que este tenha sido glorioso. Creio que seja até certo ponto normal que os fãs, ou parte deles, tenham esse tipo de apego, afinal as canções vão tecendo a nossa história, e poderíamos mesmo dizer que as canções vão nos compondo. Mas é preciso criar margens para compreender as nuances que uma obra precisa ter, no momento mesmo que ela está sendo composta. Há uma relação entre a obra e o tempo. Isso é inescapável.
As novas tecnologias não estão presentes apenas como aparato tecnológico para o lançamento do disco, mas também é tema da belíssima valsa “Nina”. Nela o narrador revela sutilmente que a relação dos dois se dá através de conversas virtuais, pois eles estão longe: “Nina adora viajar, mas não se atreve / num país distante como o meu”. Ou ainda: “Nina anseia por me conhecer em breve / me levar pra noite de Moscou”.  Recursos como o Google earth também são sutilmente mencionados: “Nina diz que posso ver na tela / a cidade, o bairro, a chaminé da casa dela / posso imaginar por dentro a casa / a roupa que ela usa, as mechas, a tiara...”. Em outro momento da canção, como bom poeta que é, extrai das palavras em português sonoridades que remetem à língua russa como em “Nina diz que embora nova”.
Na faixa “Sem você nº 2” Chico dialoga explicitamente com Tom Jobim, criando uma atmosfera e um ambiente tanto na letra quanto na música, semelhante à canção “Sem você”, uma das primeiras parecerias de Tom e Vinícius. Mas as referências a Tom não ficam só aí, e pra não deixar barato e também fazer uma brincadeira, eu diria que enquanto todo mundo quer ser Chico Buarque, ele próprio quer ser Tom Jobim. Na canção “Se eu soubesse” Chico abusa da influência jobiniana, mas abusar é só um modo de falar, pois o velho Tom ficaria feliz em ouvir essa bela canção, filha em linha direta do aprendizado que Chico fez com o ele. E ficaria feliz também em ouvir a bela voz de Thais Gulin, que divide com Chico a parte vocal da faixa.
O samba, que foi sempre uma marca tão forte na obra de Chico aparece, pois não poderia ser diferente, mas de uma forma mais discreta, pois só lá na sétima faixa é que ele dá o ar da graça. Mas também vem em alto nível. É a faixa “Sou eu” parceria com Ivan Lins cantada no disco pelo próprio Chico e por Wilson das Neves, que sabe tudo de samba além de ter uma voz sensacional. E o samba continua em “Barafunda”, cujo texto tematiza um assunto bem caro ao autor: a memória. Lembra um pouco o “Velho Francisco” e também o seu romance “Leite derramado”. Em todas essas obras a memória recebe um tratamento semelhante, a saber, é tratada como uma invenção e ora aqui, ora ali, se confunde e vai sendo re-significada a partir das velhas imagens guardadas (“Foi na Penha, não / Foi na Glória / Gravei na memória / Mas perdi a senha / Misturam-se os fatos / As fotos são velhas / Cabelos pretos, bandeiras vermelhas / Foi Garrincha, não / Foi de bicicleta / Juro que vi aquela bola entrar na gaveta / Tiro de meta...”). O samba vai deslizando e quando vemos, ou melhor, ouvimos, ele já virou salsa, pra voltar ao samba de novo.
Mas o ponto alto do disco está na última faixa, guardada talvez de propósito pra pegar o ouvinte de jeito. Pois quando não se espera mais muita coisa, somos surpreendidos com uma canção cuja densidade emotiva nos leva a uma reflexão emocionada sobre a experiência do cativeiro no Brasil. É uma parceria de Chico com João Bosco, que participa tocando violão e num discreto vocal. A levada, de um samba mais pra rural do que urbano, nos conduz a um ambiente estético que reforça o texto lamurioso. Nele, vemos um negro prestes a ser chicoteado por conta de ter visto a sinhá da fazenda a tomar banho nua no rio. Ele tenta se explicar negando que a tenha visto: “Para que me pôr no tronco /Para que me aleijar / Eu juro a vosmecê / Que nunca vi Sinhá / Porque me faz tão mal / com olhos tão azuis / Me benzo com o sinal da santa cruz” . Ao longo do seu arrazoado o escravo vai utilizando todas as corruptelas da palavra você, “vosmicê”, “vosmincê” e “vassuncê”, e vai perdendo as forças e “chorando em yorubá” e “orando por Jesus”. Por fim o narrador do texto descreve a própria condição de mestiço dizendo ter a “voz de pelourinho” e “ares de senhor”.
O time de músicos que acompanha Chico nesse novo empreendimento é o mesmo de sempre. Competentíssimo!! Com destaque para Franklin da Flauta, que reaparece, depois de muitos anos, tocando outra vez com Chico.
Chico Buarque não faz concessões e não simplifica sua arte. É um artista de seu tempo e elabora suas ideias musicais e textuais com o rigor dos que sabem o que estão fazendo, apesar das eternas maledicências da revista Veja, mas isso já é outra história... 

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