segunda-feira, 30 de maio de 2011

AS PEDRAS ENCANTADAS DE LULA CORTES

A noite era convidativa. Uma lua alta e minguante desenhava no céu uma luminosidade inspiradora. Afora o problema de estacionamento, tudo concorria para uma noite auspiciosa para assistir um documentário, que para além de suas qualidades intrínsecas, era pra mim um encontro com uma cena musical que – apesar de eu não ter convivido com ela diretamente – fazia parte de minha adolescência. O documentário era “Nas paredes das pedras encantadas” dos diretores Leonardo Bonfim e Cristiano Bastos, e veiculado no Rio de Janeiro na mostra de documentários musicais In-Edit.

            O documentário é uma tentativa de recriar as histórias em torno do álbum “Paebiru” gravado em 1975 pelos então desconhecidos artistas Zé Ramalho e Lula Cortes – artista recentemente falecido. Foi o primeiro disco do Zé, e o segundo de Lula, que dois anos antes, 1973, havia gravado o não menos psicodélico “Satwa”, com o hoje cartunista Laílson. Paebiru seguiu uma trajetória que o envolveria anos mais tarde em uma atmosfera meio mítica. Isso porque logo depois de concluído, a Rozemblit, gravadora pernambucana na qual o disco foi gravado, sofreu uma inundação (uma cheia como dizemos em bom pernambuquês) e sobraram apenas algumas centenas do LP. Esse acontecimento fez com que as poucas unidades que circularam na época fossem vendidas “a peso de ouro”. Parte deles, inclusive, foi vendida pra gente de outros países, o que acabou fazendo-o conhecido de pesquisadores estrangeiros ensejando com isso seu lançamento em cd na Inglaterra e Alemanha.

            A inspiração desse disco está num sítio arqueológico situado na Paraíba em uma localidade chamada Ingá do Bacamarte, na qual se encontra uma pedra com muitos desenhos supostamente criados por uma antiga civilização já extinta. O primeiro contato que se tem notícia com este acervo arqueológico foi feito em 1598 pelos soldados liderados pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, quando os mesmos iam no encalço dos índios potiguares.  Essa história foi contada no citadíssimo livro “Diálogos das grandezas do Brasil”, de 1618, cujo autor, Ambrósio Fernandes Brandão, interpretava os tais símbolos como “figurativos de coisas vindouras”. Algo como uma profecia.

            O documentário não apresenta imagens da época. Talvez porque não haja mesmo nenhum registro em filme daqueles momentos, mas ele consegue recriar o ambiente místico alucinógeno em que o disco foi concebido, e quais eram as ambições estéticas existenciais dos artistas envolvidos. Há momentos muito interessantes tais como o encontro de Lula e Alceu, ou as entrevistas dadas pelos moradores da redondeza da Pedra do Ingá, localidade onde se encontra a tal pedra mística que serviu de inspiração para Lula e Zé. Mas não há dúvida que o ponto alto do documentário são as falas bem humoradas e inteligentes do próprio Lula Cortes. Logo no início ele diz, em tom de chiste, que é muito dura a vida de um “pobre star” brasileiro. Isso ele fala quando estão indo na expedição à Pedra do Ingá “no pior carro do mundo, com a pista molhada e o motorista chama ‘Seu Morte’”. Sem dúvida, temos que concordar com ele!

            Lula Cortes foi um dos artistas mais “roots” (aprendi essa com meu filho) do cenário artístico musical do Brasil. Inquieto; culto; bom letrista; bom compositor e dono de um timbre de voz muito bonito, mas incapaz, assim me parece, de produzir sua própria carreira, como fizeram Alceu, Zé Ramalho e outros. Lula permaneceu até o final de sua vida como um marginal na MPB. No início da década de 1980 até que houve uma tentativa de colocá-lo em outro plano. Ele gravou pela gravadora Ariola, um álbum muito bem gravado, com encarte bonito e bom som, chamado “o gosto novo da vida”. O disco seria para colocá-lo num plano nacional, com shows de divulgação no Brasil inteiro. Era um disco que sem dúvida cairia no gosto do público, pelo menos de um público que curtia MPB, etc., mas o disco, apesar de muito bonito, não aconteceu. E não foi por causa de enchentes ou qualquer ocorrência fortuita, mas talvez por uma incapacidade de Lula em administrar a própria carreira. Uma pena para os amantes dessa senhora chamada MPB, pois muitos se tornariam, como eu me tornei, fã desse artista pernambucano.

            Em muitos momentos da projeção eu ficava pensando na necessidade de se fazer conhecer aquela cena musical que se desenvolvia em Pernambuco da década de 1970. Era sem dúvida uma ocorrência antropofágica, na qual os jovens músicos assimilavam o rock e o fundia com as manifestações culturais locais. Era uma re-leitura do rock na qual lisergia e contestação se associavam ao canto árido dos caminhos do sertão. Mas tudo isso feito por jovens urbanos cheios de referências culturais da chamada “alta-cultura” ocidental e elementos da cultura oriental (Lula trouxe do Marrocos uma cítara popular batizado por ele de tricórdio). Este foi um momento de uma florescência musical na qual muitos artistas despontaram e criaram coisas belíssimas. Ali estavam Flaviola, o grupo Ave Sangria, Marconi Notaro e outros tantos músicos como Zé da Flauta, Robertinho do Recife e Paulo Rafael. Esta cena precisa ser revisitada!

            Registre-se ainda que tudo isso acontecia em paralelo com o conhecido movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna. Como eram tempos bastante radicalizados esses dois grupos, por motivos estético-existenciais, não se misturavam. Depois tudo mudou, pois Antônio Nóbrega, filho dileto do movimento Armorial cantava junto no carnaval com Chico Science, filho dileto da cena rock-underground recifense.

            No final da película dei de cara com Lenine, que olhava absorto para a tela no momento em que rolavam os créditos. Seu olhar parecia focado em algum ponto do passado, em que uma geração de artistas pernambucanos, como ele, mostrou uma força e uma qualidade criativas dignas de serem conhecidas pelo Brasil e pelo mundo. Viva a multifacetada cultura musical brasileira!

2 comentários:

  1. oi Ricardo. ficamos lisonjeados pelo seu texto. podemos publicar no blog do doc? http://nasparedesdapedraencantada.blogspot.com/

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  2. Pô cara foi demais lê todo esse episódio e gostaria te dizer que concordo sobre a tua difinição do grande Poeta, Musico e Pintor Lula Cortes, ele merecia mais o reconhecimento nacional, mas o Lula era feliz assim, despojado e anarquista graças a deus, o seu som era muito legal e futurista, sobre o seu disco me lembro que o tinha e fiz uma troca com um carinha lá de boa viagem o mmeu disco por uma barraca de camping, 05 vinil de kiss e thin lizzy e 1 cruzeiro não lembro o valor, foi demais. Fui..............

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