domingo, 14 de março de 2010

O homem que engarrafava nuvens, Ou a saga do homem que “inventou” o baião.


“O homem que engarrafava nuvens” é o título de um maravilhoso documentário-musical. Trata-se de uma daquelas obras que nos remete a um “Brasil profundo”, na feliz expressão do mestre Mário de Andrade. Aliás, o Brasil é um país de mestres: ora são mestres eruditos, homens afeitos à erudição e de cultura enciclopédica, como o caso do próprio Mário, ora mestres de uma longa e profunda tradição oral e popular. Mas há casos em que essas duas figuras se cruzam em um único e mesmo personagem, e este é o caso de Humberto Teixeira.
            O documentário expressa muito bem esse cruzamento, mostrando o quão sofisticado era o “doutor”. Mas mesmo com toda sofisticação, Humberto era atraído, e mais que isso, conhecia bem esse universo do homem sertanejo, do vaqueiro e de todos os símbolos que atravessam a cultura popular nordestina. Essa percepção fina se evidencia nas letras que fez para Luiz Gonzaga musicar. Como bom poeta sabia captar as histórias e contá-las como se fossem suas. Um exemplo fantástico disso é a história da composição de “respeita Januário”, que infelizmente não está no documentário. Consta que Luiz Gonzaga contou a Humberto sua volta a Exu, terra natal de Luiz, e seu encontro com seus familiares. Humberto ao ouvir a história teria dito de imediato que ali estava uma história fantástica para virar canção. Em pouco tempo estava composta a letra da canção, que em seu conjunto é quase toda falada.
A letra trata com humor um movimento mítico de retorno do “herói” às suas fontes originais. Este mitologema (parte de uma narrativa mítica que se repete em várias narrativas) é muito caro ao migrante, mesmo que ele não esteja bem consciente disso. O retorno, no entanto, não ocorre de forma triunfal para o herói em questão, pois no episódio que a canção narra, o eu lírico, o próprio Gonzaga, volta todo ancho por ter feito a tal jornada do sudeste; de ter ganho muito dinheiro – “enricou! tá rico! pelos cálculos que eu fiz, ele deve possuir pra mais de 10 contos de réis!” –; de ser um artista famoso, etc.  De forma genial, a canção põe em relevo a sabedoria local enfatizando que mesmo com todo esse cartaz de Gonzaga, que possuindo uma sanfona de 120 baixos só toca na verdade em dois, enquanto que Januário, seu pai, não. Possui uma sanfona de apenas oito baixos, mas toca em todos eles. Luiz Gonzaga, de forma engraçada, conta o próprio ridículo ao qual foi exposto com sua soberba.
O documentário toca, ainda que de forma não aprofundada (talvez porque o tempo seja curto mesmo), na questão da invenção do baião. Fiz questão de já no título dessa matéria me referir a Humberto Teixeira como o homem que inventou o baião, porque de fato o gênero foi concebido, como afirma o poeta Bráulio Tavares em seu texto “o baião é carioca”, no Rio de Janeiro como fruto de um projeto estético-musical de Humberto e Gonzaga. Claro que o baião como elemento musical com determinadas características rítmicas já existia, e ambos o ouviam em suas respectivas infâncias nordestinas. Mas, como afirma Bráulio, essa música era predominante instrumental e destinada à dança. O projeto consistia então, em produzir no formato canção, uma música que invocasse toda uma paisagem nordestina, uma formação instrumental também nordestina, com foco na sanfona e cantada por um artista paramentado com a indumentária do vaqueiro. Eis aí o baião moderno e urbano.
Podemos depreender dessa passagem, que o Luiz Gonzaga que nós conhecemos e que emerge no cenário musical na segunda metade da década de 1940 com a gravação da canção “asa branca”, é uma invenção. Uma invenção no melhor estilo de uma tradição inventada tal qual nos fala o historiador Eric Hobsbawm. Mas que as coisas menor. Pelo contrário. Gonzaga e Humberto criam um personagem para dar relevo a um conjunto de manifestações estéticas cuja necessidade expressiva reclamava um canal de veiculação. Foi ele, Gonzaga, esse canal de expressão, e por isso os dois inventores merecem os títulos que ganharam: um o de rei do baião, e o outro de doutor do baião.
Muitas outras coisas merecem destaque no filme, mas por falta de espaço farei menção apenas a mais duas. Na primeira refiro-me a uma certa tensão entre o samba e o baião, que discretamente aparece no filme. No momento em que o projeto baião tenta decolar, a cena carioca, e de certa forma brasileira, era dominada pelo samba. Claro que esse projeto estético que o baião representava iria de qualquer maneira se confrontar com o ritmo carioca. Num primeiro momento no “baião de São Sebastião” Gonzaga diz: “eh Rio de Janeiro, do meu São Sebastião / pare o samba 3 minutos pr'eu cantar o meu baião”. E no segundo momento a relação é menos de pedir licença: “eu já dancei balanceio, chamego, samba e xerém, mas o baião tem um quê, que as outras danças não têm”.
            A segunda e última menção refere-se a algumas ausências: Faltou Gonzaguinha, que pena. No capítulo que fala do tropicalismo poderia ter Tom Zé, com suas reflexões originais, e por fim faltou falar de um baião instrumental que fez muito sucesso na década de 1950: “delicado” de Waldir Azevedo. Tudo bem que essa obra não era de autoria de Humberto, mas sendo o documentário em grande medida sobre o baião, poderia constar essa referência no capítulo que tratou da inserção internacional do baião (aliás um capítulo riquíssimo, por sinal).
            No momento positivo que o Brasil da era Lula atravessa, é muito saudável mergulhar numa obra como esta, que celebra a vitalidade e a originalidade da cultura brasileira.

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