segunda-feira, 30 de abril de 2012

Gonzaguinha, Marlene e o resgate digital


Não é nenhuma novidade dizer que uma das coisas mais incríveis ligadas à interface música e digitalização é o fato de muitos acervos terem sido ou salvo do esquecimento, ou simplesmente estarem a disposição de um público muito maior do que se o mesmo acervo estivesse nos escaninhos de um museu. Já foi dito também que esse tipo de disponibilização configura o que se convencionou chamar de “civilização do acesso”, em contraposição a civilização da posse. Em música isso é bem evidente, pois enquanto eu, e todos de minha geração, na minha juventude comprava os lp’s dos artistas preferidos, a geração do meu filho aprendeu a, ao invés de comprar a obra do autor preferido, baixa-la. Alguns vão argumentar que fazer o download é de alguma maneira ter a posse da obra. Mas vamos combinar que é diferente. Hoje se armazena os arquivos em “nuvens”, faz-se o download e depois se descarta, enfim é uma relação diferente, caracterizando, como disse anteriormente, mais o acesso do que a posse.
Uma das surpresas que tive com relação a essa questão de acervos recuperados, foi o áudio dos shows que cantora Marlene e Luiz Gonzaga Jr (era assim que ele assinava no início) fizeram para a Funarte em 1977 e 1978. Como minha idade não é tão provecta assim, esse foi o primeiro show que assisti na minha vida. O espetáculo fazia parte do projeto Pixinguinha e era dirigido por Fauzi Arap. Dispensa dizer que a música popular nesse momento era um dos principais núcleos de resistência ao regime militar, cantada por Chico Buarque como uma “página infeliz da nossa história”, e dessa forma o espetáculo não poderia se furtar a ironias, duplos sentidos, etc. É importante também lembrar que Gonzaguinha, como também era chamado, era um dos artistas mais censurados do momento, tendo seu disco de estreia sido proibido na íntegra em 1973, tornando-se um Lp raro, daqueles que só alguns poucos possuíam.
Pois bem, cursava eu a escola secundária, e participava do movimento secundarista, que viria anos depois a refundar as AMES (Associações Metropolitanas de Estudantes Secundaristas) e a UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas). Então lá fomos em grupo assistir o espetáculo. Não conhecia ainda a obra de Gonzaguinha, e Marlene era uma cantora de outra geração. Ela era uma daquelas cantoras do rádio que junto com Emilinha Borba foi considerada como uma das mais populares, lá pelos idos da década de 1940 e 1950. Era essa a proposta do projeto: um cantor novo com um veterano, e Gonzaguinha era naturalmente o novo. Ainda não era um cantor popular de sucesso no rádio, pois isso só viria a acontecer no início da década de 1980, e ainda tinha em torno de si a aura de maldito, pelo seu temperamento meio mal humorado. Quem o conhecia mais de perto não concordava com essa fama, mas ele mesmo tempos depois reconheceu que tinha um temperamento difícil. Eram tempos espinhosos mesmo.
A essa altura Gonzaguinha estava lançando o belíssimo disco “Recado”, e o repertório do show tinha muitas canções desse disco. Mas lá estavam outras joias como “É preciso”, canção psicanalítica na qual ele passa em revista sua relação com seus pais adotivos. Canção delicada e profunda cantada sem acompanhamento, o que potencializa sua carga dramática. E também estava lá uma singela canção chamada “Revista do rádio”, cujo sentido original era só de falar sobre o desejo de se realizar eleições para a rainha do rádio, evento que nos tempos áureos mobilizava muitos fãs das divas cantantes. Acontece que naquele momento de ditadura a simples menção da palavra eleição trazia em si um componente político muito forte. Era, como se dizia no jargão dos milicos, um ato de subversão explícita. Quando Marlene canta os versos “bons tempos aqueles / em que a gente votava... / na rainha do rádio”, no fundo, Gonzaguinha com uma voz debochada pergunta: “votava nega?”, ou em outro momento em que ele canta “Pra frente Brasil” de Miguel Gustavo em um andamento fúnebre. Os mais novos podem não entender, mas essas ironias já poderia ser caso para enquadrar o espetáculo na famigerada Lei de Segurança Nacional. Que tempos eram esses...
Muito haveria para se falar desse espetáculo e de outros ali contidos, mas sugiro que o próprio leitor dirija-se ao site da Funarte e esmiúce as preciosidades ali contidas. Faça isso leitor, e garanto que não vai se arrepender. 

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