segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um sonho de Gilberto Gil

A propósito da discussão em torno dos novos papéis da cultura, que tratei no texto "cultura em novos cenários", há uma canção do Gilberto Gil da década de 1970, que desenvolve muito bem esse tema. A canção chama-se "um sonho", e a ouvi pela primeira vez numa gravação primorosa do quinteto violado. Aliás o Lp que contém essa canção é uma obra primorosa. O seu título é "Pilogamia do baião". Não, caro leitor, não me equivoquei na digitação. O título é esse mesmo, e não adianta procurar no "Aurélio", pois trata-se de um dos tantos neologismo criado pelo poeta-visionário-místico Zé Limeira, o poeta do absurdo. Dizem que o Zé Limeira é uma invenção do jornalista Orlando Tejo, mas isso já é outra história...
Segue abaixo o texto no qual eu faço uma pequena análise da letra:

Há uma canção de Gilberto Gil dos anos 1970, que expressa bem as discussões em torno dos valores modernos (industriais) e pós-modernos (Pós-industrais). Ela chama-se “um sonho”. Diz a letra:
Eu tive um sonho
Que eu estava certo dia
Num congresso mundial
Discutindo economia.
Argumentava
Em favor de mais trabalho,
Mais emprego, mais esforço,
Mais controle, mais-valia.
Falei de pólos
Industriais, de energia,
Demonstrei de mil maneiras,
Como que um país crescia
E me bati
Pela pujança econômica,
Baseada na tônica
Da tecnologia.
Apresentei
Estatísticas e gráficos
Demonstrando os maléficos
Efeitos da teoria,
Principalmente,
A do lazer, do descanso,
Da ampliação do espaço
Cultural, da poesia.
Disse por fim,
Para todos os presentes,
Que um país só vai pra frente,
Se trabalhar todo dia.
Estava certo
De que tudo o que eu dizia
Representava a verdade
Pra todo mundo que ouvia.
Foi quando um velho
Levantou-se da cadeira
E saiu assoviando
Uma triste melodia,
Que parecia,
Um prelúdio bachiano,
Um frevo pernambucano,
Um choro do Pixinguinha.
E no salão,
Todas as bocas sorriram,
Todos os olhos me olharam,
Todos os homens saíram,
Um por um, um por um, um por um, um por um.
Fiquei ali,
Naquele salão vazio,
De repente senti frio,
Reparei: estava nu.
Me despertei,
Assustado e ainda tonto,
Me levantei e fui de pronto
Pra calçada ver o céu azul.
Os estudantes
E operários que passavam
Davam risada e gritavam:
"Viva o índio do Xingu! "Viva o índio do Xingu! Viva o índio do Xingu! Viva o índio do Xingu! Viva o índio do Xingu!"


Esta letra, que tem estrutura poética semelhante ao côco nordestino (estrofes de 4 versos com o primeiro contendo 4 sílabas e os restantes com 7), apresenta o relato de um sonho ocorrido ao eu lírico. Não é revelada a posição ideológica do mesmo, mas no sonho ele assume a posição “moderna” - industrialista-burguesa. Estando ele num congresso de economia, defende a criação de mais emprego, mais esforço e defende a mais-valia. Tudo isso através da criação de indústrias, de pólos de energia, isto sim, signos de desenvolvimento e prosperidade. O crescimento, dessa forma, viria da tecnologia, entendida aqui, como tecnologias tradicionais: máquinas (signo moderno).
O discurso racionalista (estatísticas e gráficos) não poupava os signos do atraso: o lúdico, o lazer, o descanso e o “espaço cultural da poesia”. Só o trabalho (o país só vai pra frente se trabalhar todo dia) pode gerar a riqueza e a acumulação que se deseja. Inebriado pelo seu próprio discurso, o orador não se dava conta do anacronismo e inadequação do seu discurso (estava certo de que tudo que eu dizia representava verdade pra todo mundo que ouvia). Só se apercebe quando um velho levanta-se da cadeira e sai assobiando. Notem que contra o discurso lógico-racionalista do defensor da “pujança econômica”, se opõe matreiramente uma atitude não discursiva, mas cheia de significados. Com seu gesto lúdico (sair assoviando) o velho desarma toda a racionalidade e verborragia do orador. E não é qualquer coisa que o velho assovia.
A indefinição da melodia, que está entre um prelúdio bachiano, um frevo pernambucano ou um choro de Pixinguinha, produz um arco de solidariedade entre a cultura popular e erudita. A música, como contra-discurso, desestabiliza o discurso lógico racional. A ação do velho (emblematicamente um portador da tradição) é devastadora para o orador, que repentinamente se vê nu (o rei está nu). Ato contínuo ele é exposto ao ridículo e todas as bocas sorriem, todos os olhos o olham, e todos os homens se retiram... ele fica só e sente frio. E agora José? Nesse momento ele acorda assustado e vai para a calçada ver o céu. Nas ruas a cena que ele vê parece que continua a reforçar o contra-discurso iniciado pelo velho. O que ele vê ainda lhe parece insólito. Jovens estudantes e operários gritam entre risadas: “viva o índio do Xingu”. O índio aqui pode ser entendido como o antípoda da mentalidade industrialista, um signo macunaímico (ai, que preguiça).

Nesta canção Gilberto Gil realiza sinteticamente a discussão em torno do moderno e do pós-moderno no sentido que atribuímos aqui. E é sintomático que a frente do Ministério da Cultura, Gil seja um aguerrido defensor dos novos papéis da cultura nos novos cenários que se configuram na contemporaneidade.

2 comentários:

  1. Parabéns pela brilhante análise, Ricardo! Desconhecia essa música do Gil. Meu Deus! Uma crítica tão contundente, permeada de tanto simbolismo! Quem dera que a nossa juventude, ou melhor, que a humanidade como um todo, entoasse em uníssono, num potente refrão, esse "versinho" aparentemente despretensioso, mas tão repleto de significado: "Viva o índio do Xingú"! É amigo... Parece que o sonho do Gil engendra outros sonhos na gente. Rs!

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  2. Fantástica a sua análise! Dariam algumas boas horas de discussões sobre suas interpretações...
    Belos trabalho, abraços !

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