Era uma vez um lugar no coração de uma grande cidade. Mas seu tempo era outro, seu fluxo era outro e seu recorte geográfico já avisava aos que ali se aventuravam que se tratava de um lugar diferente, para o qual seria necessário um modo também diferente de percorrê-lo. Havia nesse lugar muita dança, muita música e de todos os recantos da cidade acorriam pessoas dispostas a penetrar naquela atmosfera. A comungar com ela. Era, sem dúvida, muito sedutor.
Além das ladeiras, curvas, casario do século passado e outras idiossincrasias, havia a presença de um bonde. Este sim parecia que vinha de um tempo sem tempo, como o tempo da poesia, do sonho, ou da música. Talvez o “tempo dos quintais”, tempo que, como diz o poeta do cancioneiro popular, havia fadas e bondes, e nesse bonde havia sempre um anjo pra guiar, e outro pra dar lugar, pra quem quisesse sentar... este bonde cumpria dois tipos de itinerários: em um, ele saia de um ponto físico material e chegava em outro, também físico e material; em outro, ele nos fazia percorrer outro tipo de roteiro. Menos material e mais espiritual, seja lá o que possa significar esta palavra. Ele nos levava diretamente a um país da delicadeza perdida, para citar outro poeta do nosso cancioneiro. Por um momento poderíamos estar como que encantados pela poesia que ele emanava e nos sentir em um país cordial e generoso.
Este bonde, assim como o do poeta Carlos Drummond de Andrade no seu poema das sete faces, também passava cheio de pernas. E eram também pernas pretas, amarelas, brancas, etc. isto porque não acorriam apenas pessoas da cidade para este lugar, mas gente do mundo todo. Poderíamos até pensar que o mundo vivia em paz. Que os homens enfim tinham abandonado suas ganâncias, loucuras e vontade de subjugar o outro homem. Mas não era! Era que esse bondinho nos deixava tão terno e tão amolecido (como o conhaque do poeta mineiro), que por um átimo de tempo tínhamos do mundo outras notícias. Mas tratava-se de sonho, e sonho, como nos diz um outro poeta Calderón, sonhos são...
Por estas ladeiras de tanto sobes e desces o motorneiro parava a orquestra um minuto. Largava a batuta e contava casos de outros tempos e outras campanhas. Campanhas contra a privatização, campanha contra o desmantelamento daquele mais que meio de transporte, um verdadeiro símbolo de que outro mundo é possível, outra forma de se relacionar é possível. Mas não era só poesia e música a serem transportadas por essas ladeiras, curvas e paralelepípedos. Lá estavam os próprios poetas. Lá estava Bandeira a pedir em oração que a própria santa, a Teresa, olhasse pelos que ali moravam: “Santa Teresa olhai por nós / moradores de Santa Teresa”. Lá estava também Drª Nise da Silveira, com Bandeira, a discutir filosofia no Curvelo... enquanto o bonde não vinha.
Assim como Milton Nascimento em sua bela canção “conversando no bar”, eu também levei um susto imenso: o sonho, a música e a poesia que eram o bondinho de um lugar de verdade chamado Santa Teresa descarrilou e se chocou contra a dureza e o concreto da indiferença dos marqueses de terras perdidas. Chocou-se também contra a negligência e a mesquinhez. Chocou-se contra a aspereza das almas sebosas cujo afã acumulador as fazem cegas.
No momento em que escrevo essas linhas, não ouço, compondo a paisagem sonora do meu lugar, os sons do bom e velho bondinho. É um silêncio que incomoda e entristece. Mas torçamos e lutemos, sobretudo, para que esse silêncio seja apenas momentâneo, e nesse sentido conclamo toda cidade a se unir e se solidarizar com o bairro de Santa Teresa e seus moradores, para que o descaso e a mesquinhez não se tornem a regra e triunfem sobre a poesia e o sonho. Vivo estarão na nossa memória o motorneiro-maestro-anjo Nelson e os demais passageiros que foram vitimados no último sábado dia 27 de agosto, ao cair da tarde.
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