quarta-feira, 22 de junho de 2011

QUE TAL O SILÊNCIO?

   Por Ricardo Moreno

  Há anos atrás quando eu fazia graduação em música, eu costumava passar pela livraria da Universidade e dar uma olhada nas novidades. Um dia dei de cara com um título que me chamou atenção, pela sua natureza inusitada. O livro se chamava “ódio à música”. Tentei ler de novo achando que estava sendo traído pela minha visão, afinal não era razoável um manifesto contra a música numa universidade que forma músicos, professores e pesquisadores de música. Não era nem mesmo razoável imaginar alguém com tanto ódio dessa arte a ponto de escrever um livro. Que não goste, tudo bem, mas daí escrever um livro, já era demais.
            Esperei um momento em que tivesse mais tempo para saciar minha curiosidade, e quando pude voltei à livraria para acertar contas com ela. Fiquei muito surpreso quando ainda na introdução vi que o autor, Pascal Quignard, era um compositor, regente e educador musical. Realmente um espanto! Mas ainda nas primeiras páginas ficou clara a razão que o levou a tal empreitada. Ele estava simplesmente se rebelando contra uma prática que se tornou, se não universal, ao menos muito disseminada. Refiro-me à prática da banalização da música e a ampliação geral do nível sônico nas sociedades contemporâneas.
            Pensa-se muito pouco nisso, mas os efeitos do som sobre os corpos humanos e dos demais animais não são desprezíveis. Pesquisas militares do governo dos Estados Unidos feitas desde a década de 1960, já apontavam os efeitos danosos do som em altos decibéis em animais. O compositor canadense Murray Schafer relata em seu livro “O ouvido pensante” algumas dessas ocorrências. Numa, por exemplo, ele descreve a morte de um rato quando colocado em um campo sonoro de altos decibéis. Na autópsia fica demonstrado que ele morreu de superaquecimento instantâneo. Outros testes científicos demonstraram que ocorrem mudanças na circulação sanguínea e no funcionamento do coração quando uma pessoa é exposta a uma determinada intensidade de ruído. Na mesma perspectiva, cientistas do Instituto Max Planck realizaram há tempos atrás pesquisas para saber por que pessoas que trabalham em ambientes muito barulhentos tendem a ter mais problemas emocionais e familiares.
            A falta de reflexão sobre os ambientes sonoros acaba por gerar situações esdrúxulas, como a que eu mesmo presenciei anos atrás numa viagem de ônibus que ligava a Penha ao Cosme Velho. A empresa, para demonstrar atenção com seu público resolveu instalar televisores em toda a sua frota. Acontece que os ônibus já possuíam um serviço de rádio, o qual não foi desativado para a instalação do novo serviço. Talvez para agregar mais valor, ficavam os dois meios de comunicação funcionando ao mesmo tempo. É verdade que a televisão ficava sem som, mas era possível, como eu mesmo vi, o vídeo transmitir uma imagem de um guitarrista tocando rock numa performance típica de guitarrista solo, enquanto o rádio tocava um pagodão a todo vapor. Uma loucura!  
            Há uma relação inversamente proporcional entre sociedades pré-industriais de um lado e sociedades industriais, de outro, no que diz respeito aos sons naturais, humanos e de utensílios tecnológicos. Segundo Schafer nas culturas pré-industriais a presença de sons naturais era de 69% dos sons vivenciados, enquanto os sons humanos eram de 26%, e os sons de utensílios e tecnológicos alcançavam apenas 5%. Nas sociedades contemporâneas a proporção é de 68% de sons tecnológicos, 26% de sons humanos e apenas 6% de sons naturais. Isso explica as razões pelas quais o ruído vem sendo incorporado ao discurso musical. Ainda no começo do século XX, em 1913, o compositor Luigi Russolo, escreveu um manifesto no qual defendia a incorporação dos ruídos, presença marcante na vida cotidiana do período industrial, na música desse momento. É “A arte dos Ruídos” o título de seu manifesto futurista.
            De todo modo, é preciso estar consciente das marchas e contra-marchas do nosso tempo e perceber de que modo podemos interferir nos rumos da nossa jornada. A ideia de assimilar os ruídos ao discurso musical pode até ser um jeito de esconjurar, em parte, o demônio-ruído, mas faz-se necessário reduzir seus efeitos nocivos e para isso são necessários consciência do problema e educação para transformá-lo. Urge uma gestão social e democrática do som.

Um comentário:

  1. Ótima sua reflexão Ricardo. "Postei", lá no meu blog um trecho de Machado de Assis que descreve bem este nosso escutar de nós mesmos, do outro e do ambiente em que nos acercamos.
    Quando puder leia, é do livro Esaú e Jacó.
    http://www.consultoriodosvalenca.com.br/umsegredo

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