Por Ricardo Moreno
Artigo publicado originalmente no jornal "Pôr-do-sol".
No momento em que vai terminando os oito anos do governo do presidente Lula, é chegada a hora de fazer uma pequena reflexão sobre o que foi feito na área a qual nos dedicamos aqui em nossa coluna: música. Não tenho dados para uma análise de grande envergadura, mas em particular gostaria de tratar de um assunto que considero da maior importância para a cultura brasileira, qual seja, a relação entre a cultura popular e as políticas públicas no Brasil.
Costumo, em linhas muito gerais, distinguir três grandes momentos de aproximação do governo brasileiro com as culturas populares. Primeiro foi no final década de 1940, quando na II Semana Nacional de Folclore o grande pesquisador e intelectual brasileiro Renato Almeida, diz que “proteger o folclore não é tarefa de estudiosos (como até então) nem de alguns homens de boa vontade, é obra do Estado”. A fala de Almeida dá ênfase à proteção das “artes populares”, ao “folclore brasileiro” etc. e não ao sujeito concreto que é detentor desse saber. Claro que este homem, muitas vezes em situação de risco social, poderia tirar proveito dessa “proteção”, mas não era ele o objeto da iniciativa, e sim o patrimônio simbólico.
O segundo momento eu defino como tendo sido entre as décadas de 1970 e 1980 quando em associação com a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, a FUNARTE – instituição ligada ao Ministério da Cultura – realiza uma espécie de inventário da música folclórica brasileira e faz diversas gravações de manifestações musicais folclóricas de várias partes do Brasil. Essas gravações foram publicadas na forma de discos de vinil no formato de compactos (eram discos de vinil de duração aproximada de doze minutos). Ainda que precárias, essas gravações representam até hoje uma boa fonte de pesquisa para os interessados no assunto. Mas do ponto de vista de políticas públicas, mais uma vez vimos os esforços do Estado brasileiro (cheio de “boas intenções”) em atuar no sentido de preservar, ou resgatar, como é muito comum que se diga, a manifestação musical popular, mas sem dar a mesma atenção ao homem de carne e osso que é detentor desses saberes.
Chegamos então ao terceiro momento: O Ministério da Cultura, primeiramente com Gilberto Gil e posteriormente com Juca Ferreira, desenvolveu um projeto chamado Pontos de Cultura. Esse projeto coloca pela primeira vez a perspectiva de atuar na valorização do patrimônio simbólico, ao mesmo tempo em que valoriza também o homem que dá corpo e vida ao patrimônio imaterial. Este projeto, entre outras coisas, articula cultura popular e economia solidária de modo a fazer com que os praticantes e detentores desses saberes populares se capacitem para atuar como profissionais, extraindo dividendos materiais de seus saberes imateriais. Dessa forma, as praticas culturais populares são revalorizadas fazendo com que os mais jovens passem a se interessar por aquela dança, música ou técnica de construção de instrumentos, por exemplo, mas sempre na perspectiva inevitável de dar novos significados a estes fazeres.
Hoje já são mais de dois mil pontos espalhados pelo Brasil. Eles são encontrados tanto nas periferias das grandes cidades, quanto em pequenos municípios. Além de articular cultura e cidadania o projeto gera visibilidade para práticas e saberes musicais que estiveram durante muito tempo relegados a uma condição de cultura inferior. Isso quer dizer que tanto a “alta cultura” como a “cultura popular” são reconhecidas e financiadas pelo Estado brasileiro. Cada ponto de cultura pode receber apoio financeiro de até R$ 185.000,00 para ser utilizado conforme o projeto apresentado. A articulação de cultura e cidadania gera importantes ganhos simbólicos e materiais para as comunidades detentoras dos saberes tradicionais. Isso é muito importante e gera inclusão e cidadania, pois muitas dessas comunidades estão em situação de risco social.
Para o economista Paul Singer, há muita cultura na economia solidária, e muita economia solidária na cultura. É preciso, no entanto, juntar essas duas pontas. Não há dúvida que um novo Brasil está surgindo a partir da idealização dos "pontos de cultura", e que esse novo Brasil se apresentará ao mundo como síntese das possibilidades humanas ilimitadas baseadas na generosidade e na solidariedade. Somos, como diria Darcy Ribeiro, uma “nova Roma”, ainda melhor, pois lavada a sangue negro e índio.
Muito temos que caminhar para que de fato essa terra se torne uma “mãe gentil” e para que este belo sonho se efetive, mas acho que já começamos o caminho. Viva Gilberto Gil e esta bela revolução dos tambores! Viva o Brasil!
Um feliz natal a todos e um ano novo com muita disposição para as lutas que hão de vir.
ps. Para saber mais sobre este assunto sugiro o livro “Pontos de Cultura, o Brasil de baixo pra cima”, de Célio Turino.
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