Sabe essas ideias que quando a gente vê alguém realizando nos ocorre a pergunta: “puxa como é que não pensei nisso antes?” Pois é... me deparei com uma dessas outro dia. Milton Nascimento fez, em parceria com Tunai, uma bela canção sobre esse assunto – “certas canções” (“certas canções que ouço / cabem tão dentro de mim / que perguntar carece / como não fui eu que fiz...”) –. Mas a ideia a qual me refiro era tão boa que mesmo antes de vê-la realizada já pressenti sua qualidade. Estou me referindo ao projeto “neuropolis” de autoria do músico e compositor paulista Lívio Tragtenberg. A palavra é escrita assim sem o acento agudo no primeiro ‘o’, mas é para ser pronunciada como se tivesse. Excentricidade do autor.
Nesse projeto Lívio pôs no estúdio artistas, músicos e compositores que fazem das ruas de São Paulo o seu espaço de exibição. Claramente se coloca já de cara um grande problema: que unidade é possível dentro de uma tremenda diversidade que esses músicos encarnam? Pra se ter uma ideia do arco musical de Sampa representado no projeto, temos desde os emboladores Sonhador e Peneira à Yuko Ogura, musicista e professora de koto e sanguen, instrumentos tradicionais japoneses. Porém, não obstante a dificuldade, Lívio consegue não só produzir um clima de unidade no trabalho, como consegue interessantes encontros, com excelentes resultados timbrísticos.
A praça pública, já sabemos, é o espaço, como diria o mestre russo Mikail Bakhtin, do vozerio e da polifonia. Ele é o lugar do multifacetado, do divergente, ou numa última palavra: da democracia. Ao contrário das mídias, no seu viés corporativo, o espaço da rua possibilita a emergência das singularidades e das experiências, estabelecendo um fluxo vital estético-sonoro tão plural quanto plural somos nós, seres humanos. Desde tempos imemoriais temos músicos ambulantes a transitar pela corte ou pelas cidades fazendo a crônica do tempo, ou, trabalhando a soldo de algum poderoso, tecendo loas em sua honraria. Comum também era a presença do poeta-cantor exercendo o puro e simples entretenimento.
O termo “neuropolis”, explica o autor, está intimamente ligado a ideia de um fluxo nervoso que atravessa a polis e que lhe dá organicidade. São esses nervos que dão consistência vital e unidade ao complexo urbano citadino. Cidade é tumulto, troca, experiência e vitalidade. É música e paisagem sonora. E desse nervosismo e dessa pressa é que os músicos-artistas-compositores extraem sua matéria e a devolve em forma de sons e canções. O poeta-cantor é um fio e dessa forma ele dá estrutura nervosa ao caos-cosmo urbano.
Os temas vão se seguindo nos dando o sabor da experiência estética da rua. Lívio foi muito feliz nisso: ele conseguiu, e obviamente não é só mérito seu, transpor para dentro do estúdio toda graça, dinâmica e leveza das apresentações da via pública. Destacaremos aqui apenas algumas faixas. O disco é aberto com um delicioso híbrido de samba e carimbó “aforrozado”, em cujo título já se encontra as marcas da mestiçagem que vai dar o tom do projeto: “Nega samurai”. Em “Lombada, curva: pare” Lívio se junta ao cantador Sonhador para compor um coco cujo tema é a percepção da cidade de São Paulo que tem um migrante nordestino. Diz a letra: “a maior agitação se vê na praça da Sé / mendigos e cachaceiros, fazendo o maior banzé / turista tirando foto e crente falando rouco / uns dizem que aqui é bom, outros diz: lugar de louco”.
“Pajaro Choguy” é um tema tradicional paraguaio muito comovente. Ela se encaixa num tipo de conto que Câmara Cascudo definiu como um conto de exemplo. Diz a letra que uma antiga lenda conta a história de um indiozinho que estando em cima de uma árvore, se assustou com o grito da própria mãe caiu e morreu. Mas por um estranho sortilégio, ao se encontrar nos braços da mãe se transformou num pássaro choguy. É uma melodia comovente interpretada por Ruben Vera, paraguaio, e Frank, brasileiro do Mato Grosso do Sul.
A mistura é caleidoscópica e estonteante, mas dá certo. Os sotaques se misturam e se destilam compondo um mosaico afirmativo da cultura musical urbana da maior metrópole brasileira: São Paulo. O projeto sinaliza a permanência de uma longeva tradição de cantares públicos que no passado foi dos trovadores na França, dos griôs africanos e dos cantadores árabes. Saudemos!
domingo, 2 de outubro de 2011
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