O Som do Imaginário ou Roqueiros de Antigamente
Por Ricardo MorenoO articulista desta coluna escreve estas linhas ainda sob os afetos do falecimento do ídolo Zé Rodrix. É certo, talvez, que a morte seja para nós, como escreveu o filósofo Heidegger, “a possibilidade mais própria e incondicionada, certa e, como tal, indeterminada e insuperável”. Mas mesmo assim, acrescenta ele, a excluímos de nossa cotidianidade e a remetemos para um campo fora do nosso horizonte possível, como se ela dissesse respeito ao SER, mas não ao ser individual que somos. Não obstante esse exercício de exclusão existencial da morte, ela imiscui-se em nossas vidas e nos obriga ao exercício da reflexão e do sentimento.
Zé Rodrix foi um desses artistas inquietos e versáteis que traduziu em canções todo um imaginário de uma época e de uma geração. Canções como “ama teu vizinho como a ti mesmo”, “hoje ainda é dia de rock”, “primeira canção da estrada” e “casa no campo”, não só traduziam todo um conjunto de desejos de uma geração insatisfeita com o status quo, como apontavam para um modo de vida que, independente de se fazer a opção de ir ou não morar em comunidades alternativas, estava ao alcance de todos em suas práticas cotidianas.
Rodrix participou, como quase todos de sua geração, dos festivais de música popular da década de 1960. Esteve no grupo vocal “momento quatro” que acompanhou Edu Lobo na interpretação da canção “ponteio” (vejam no youtube, ele é o mais baixinho e ainda não usava bigode); venceu, com “casa no campo”, parceria com Tavito, o festival de Juiz de Fora em 1971; participou também nessa época do grupo “som imaginário”, que acompanhou Milton Nascimento; e inventou uma nova sonoridade, o rock rural, ao lado de Sá e Guarabyra. Sua trajetória artística é um exemplo claro de uma dinâmica musical invejável. Em seu repertório incluem-se rumbas, rocks, baladas românticas, e até samba (xamêgo da nega). É nesse sentido, um compositor pós-tropicalista, que soube fundir em sua obra tendências diferentes, sempre com muita competência e humor.
Ao lado de Sá e Guarabyra gravou apenas dois Lp’s: “passado presente e futuro” de 1972 e “terra” de 1973. Estão nesses dois discos, pérolas como a psicodélica “zepelin”, cujo arranjo é francamente inspirado nos que George Martin fazia para os Beatles. Lá está também um hino da geração mochileira: “primeira canção da estrada” (“tinha apenas dezessete anos / no dia em que sai de casa / e não fazem (sic) mais de quatro semanas / que eu estou na estrada”). Outra que merece destaque é a belíssima “mestre Jonas” que recentemente foi incluída no filme “meu nome não é Johny”.
Os arranjos também compõem um aspecto importante na obra de Zé Rodrix. Uma quase constante em sua produção da década de 1970 é o uso dos metais. Destaco aqui o arranjo feito pelo próprio Zé, para a canção “casca de caracol” do Lp “I acto” (primeiro disco solo) de 1973. Neste arranjo os metais (trombone, trompete e trompa – esta última tocada pelo educador Bohumil Med) dialogam de forma muito sutil e criativa com a linha de baixo. Outro arranjo magistral foi o arranjo feito para a clássica canção cubana “guantana-mera” do disco “quando será?” de 1977. Se prestarmos atenção notaremos que durante toda a canção não há presença de nenhum instrumento típico de acompanhamento (baixo, bateria, violão etc) a base harmônica é feita por vozes de um coral, e uns sinos. Um primor de delicadeza e de utilização sutil dos recursos musicais.
A obra de Zé Rodrix é muito inspira-dora, e se posso aqui assumir a função de conselheiro, sugiro aos músicos e compositores mais jovens que ouçam a obra desse irrequieto compositor popular. Ah, e sugiro também que os amantes da boa e velha mpb se deliciem com a obra desse carioca e brasileiro de boa cepa.
Obs.: Algumas ideias desenvolvidas aqui foram concebidas em uma daquelas conversas instigantes no restaurante “ora pro nobis” em Santa Teresa. Uma parte do título foi sugerida pelo jornalista Jorge Veloso (o som do imaginário). A expressão “roqueiros de antigamente” era como meu filho, Ícaro, então com 6 anos, se referia aos discos de Sá, Rodrix e Guarabyra. Por fim agradeço a Jaime Bastos Filho, por me chamar a atenção para o arranjo de “guantanamera”.
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