Em
um verso inesquecível da música popular brasileira, na canção “Clube da esquina
nº2”, o letrista Márcio Borges diz que “de tudo se faz canção”. E é mesmo! Nada
que é humano escapa aos cronistas e letristas de nossa MPB. Talvez tenhamos
apenas que lamentar o fato de não haver um maior número de experimentações de
temas e formas para se compor letras de canções em tempos mais recentes. É
claro, por outro lado, que muito se fez nesse sentido e podemos contar em nosso
cancioneiro com um repertório de temas muito variados. Alguns até diriam,
fazendo eco ao vulgo, que estou chorando de barriga cheia... Pode ser!
Mas
de toda essa trama de assuntos que inspiram os nossos artesãos da palavra
cantada, uma me chama atenção para esta breve nota/comentário: é a canção
“Relp” de José Miguel Wisnik. Nela o autor, um experimentado nas lides
literárias, pois é professor de Literatura na USP, escritor e ensaísta de
mancheia, constrói um ambiente um tanto fantástico – como o de “Alice no país
das maravilhas” –. Ambiente labiríntico e enigmático no qual as palavras
refletidas ganham novo colorido e se espraiam tal qual um cristal a refratar
sentidos. Tudo isso em uma atmosfera infantil, ou, para ser mais preciso,
infanto-juvenil.
Esta
situação “espelhar” ou refletida para a qual a canção nos remete é elaborada
primeiramente com o recurso do palíndromo, que para quem não conhece, é uma
construção escrita na qual a leitura da esquerda para a direita, que é a nossa
forma normal de leitura, se iguala a leitura feita da direita para a esquerda.
A palavra “arara” é um bom exemplo. Só que um bom palíndromo é feito com
frases, e para além da brincadeira e do jogo “espelhado”, ele também tem,
quando bem feito, uma carga de deslocamento de sentido muito interessante.
No
início da canção, na gravação feita pelo próprio Wisnik, Jussara Silveira e
Arnaldo Antunes, este último, com sua inconfundível voz grave nos diz o
primeiro dos palíndromos que vão se desdobrar durante a canção: “lá vou eu em meu eu oval”. Ressoa
bastante psicodélico, não? O que seria um eu oval? A frase é dita sem nenhum acompanhamento
instrumental, a título de introdução mesmo, como que para nos situar dentro da
atmosfera onírica a qual a canção irá em breve nos conduzir. Em seguida instaura-se o ambiente “Alice nos
país das maravilhas” quando ele diz: “a
menina olha no espelho pelo ralo e diz oi
rato otário, que que tu faz aí?” (colocarei em negrito os palíndromos
do versos). Mas quem responde não é o rato e sim a própria voz da menina que na
condição de eco, e olha aí a situação “espelhar” de novo, diz “eco
vejo hoje você”.
A
canção segue desvelando a situação psicológica da menina: “a menina fica assim, meio assim, quer ser cor e ser ocres”. E “num
repente começa a sussurrar a rezar, uma reza que mais parece um rap / um help
pro céu um salmo / ó mãe tu era réu te
amo / ó mãe tu era réu te amo”. Aqui o clima deriva para uma situação
psicanalítica, ou então, como disse o próprio Wisnik, para um tema do escritor
russo Dostoievski. A nossa “Alice” fica ali, “rindo e polindo / o que parece ter dentro e fora de si / ou então
construindo um lindo palíndromo (e aqui a canção torna-se auto-referente) /
outro tesouro de ouro e marfim / que mima a mina e anima a mim / num breque
sem fim (e aqui “breque” poderia ser uma referência consciente ou
inconsciente ao pintor cubista Georges Braque) / de um samba tão velho que bate no espelho e se vê no cristal / ela faz
o seu e o meu carnaval cantando assim: só
dote e dádiva é a vida de todos... o ambiente agora se abre para um
gozo dionisíaco no qual o coletivo “todos” é indício de uma totalidade que
exercita o pleno direito ao prazer e a um gozo comunal proporcionado pelo
carnaval, festa do des-limite e do prazer orgiástico.
A
canção palíndromo de José Miguel Wisnik, como é próprio da linguagem dos
grandes poetas, pode ser explorada e tateada milimetricamente até nos cansarmos
de encontrar nela os múltiplos sentidos de sua polissemia. E, como disse o
próprio Wisnik comentando as relações entre canção popular e literatura no
Brasil: “isso não é pouca coisa”.
Os. Os palíndromos contidos na
canção foram construídos pela filha do compositor, cujo nome no momento me
escapa.
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