Na semana passada, a seção Digital & Mídia deste jornal publicou página inteira sobre a migração da internet “tradicional” para as redes sociais. Talvez não haja fenômeno cultural mais importante acontecendo atualmente no mundo. Muitas pessoas embarcaram na onda e até já abandonaram seus emails, forma de correspondência que passou a ser considerada tão antiga quanto cartas de papel. Por isso esses migrantes são apontados como pioneiros das novas tendências bacanas. Mas podem ser vistos igualmente como garotos-propaganda — não-remunerados — de uma reação poderosa contra a liberdade na rede, que faz tudo para transformar nossa vida virtual (já a parte mais decisiva de nossas vidas?) em propriedade de meia-dúzia de megacorporações.
Uma capa recente do Segundo Caderno também mostrou pessoas que passaram a usar o Facebook “para compartilhar seu conhecimento”, construindo excelentes guias culturais — que “antigamente” teriam lugar em blogs e sites pessoais — dentro do território do Mark Zuckerberg. Não sei se todos pensam, ao fazer essa opção de publicação numa rede social específica, que só outras pessoas inscritas no Facebook, tendo portanto aceitado os Termos de Uso do Facebook (permitindo que essa empresa utilize seus conteúdos com finalidades comerciais), terão acesso a seu valioso conhecimento. Não posso deixar de comparar: é como deixar as ruas comuns de uma cidade e passar a viver num condomínio cercado por muros e seguranças, com serviços “públicos” próprios e onde todas as casas são propriedade de uma única empresa e não de quem mora nelas.
Redes sociais como o Facebook são conhecidas justamente como “walled gardens”, ou — tradução apressada — “jardins murados”, que não possuem canais livres de troca de informações com o resto da rede (e que fazem inúmeras restrições técnicas para impedir a “portabilidade” dos dados que criamos por lá — tente, por exemplo, transferir a sua lista de “amigos” do Facebook para uma outra rede social — é praticamente impossível). A mudança da internet “tradicional” para dentro do muro é uma mudança radical de “estilo de vida”. Não sei se todo mundo tem consciência do que está fazendo ao trocar o “tradicional” pelo “novo”.
Não são só as redes sociais os vilões desta minha fábula moral. Perigosas também são todas essas apps que a Apple, com auxílio luxuoso de nossos impulsos consumistas e design genial, transformou em moda obrigatória para smartphones e tablets. Elas quase sempre nada mais são do que interfaces bonitinhas entre o usuário e a internet “tradicional”, tornando nossa vida on-line muito mais facilmente controlável pelas empresas. Tudo que uma app faz, um browser “antigão” poderia ser desenvolvido para fazer, com muito mais compatibilidade entre sistemas operacionais e aparelhos. Agora não: se quisermos que o público tenha acesso às informações que desejamos compartilhar, precisamos de apps diferentes para o iPhone, o iPad, o Android, o sistemasei-lá-qual-é-o-nome da Nokia e assim por diante. Desenvolver todas essas apps custa caro e precisamos ser aprovados pelas várias lojas — da Apple, do Google etc. — que passaram a ter o poder de aprovar tudo o que entra em suas redes. Labirintos de jardins, com muralhas cada vez mais altas.
O exemplo da Apple é seguido por milhares de outras empresas, como as fabricantes de televisão, que estão criando seus mundos fechados de comércio, onde só poderemos acessar apps específicas. Por exemplo: se isso vingar, numa TV da Sony só poderemos comprar vídeos na loja A, ou fazer ligações pela empresa Y, ou participar da rede social Z. Claro, tudo rodará por cima da internet, e um browser poderá ser o caminho secreto para fora do muro. Mas pouca gente saberá o que vem a ser um browser, e muitos dos novos serviços serão desenvolvidos somente para essa nova realidade pós-browser.
Os browsers foram criados nos tempos pioneiros da internet, quando surgiu a própria web, desenvolvida nos laboratórios do CERN, com dinheiro público europeu, pelo santo Tim Berners- Lee, que fez questão de manter sua invenção livre e gratuita. Naquele tempo, as grandes empresas, mesmo a Microsoft, não prestavam tanta atenção em qualquer rede que não fosse corporativa. Só embarcaram na grande aventura virtual depois, junto com outras empresas nascidas no mundo on-line, buscando fechar o que era aberto, para enquadrá-lo em seu “modelo de negócio”. Várias tentativas de transformar a internet em shopping center totalitário explodiram como bolhas. A estratégia atual parece ser a mais difícil de combater. As pessoas estão interessadas em máquinas e não nos conteúdos que elas podem apresentar (não há mais filas para lançamentos de discos — há filas para lançamento do iPhone 4). Compramos, e só depois vamos inventar um uso para os objetos comprados. Uma app colorida (sai dessa, Björk!) nos transmite a sensação de que não jogamos dinheiro fora.
Quando vou ficando pessimista, penso na Microsoft, que parecia invencível pré-internet, controlando cada vez mais áreas importantes de nossa vida. Hoje tem que correr atrás do Facebook, da Apple e do Google. Esperemos novos corredores, que vão surgir distantes da prisão divertida das apps e redes sociais que querem ser nossas únicas portas de entrada para a verdadeira riqueza das redes. Ainda acredito que a abertura é a única forma de aumentar essa riqueza. O resto vira bolha.
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