quarta-feira, 15 de junho de 2011

Religião, lavagem cerebral e educação

Por Paulo Ghiraldelli Jr.

   Nossas universidades públicas, na seqüência do “modelo USP”, possuem uma forte tradição de ensino laico.
A herança dos ideais positivistas dos primeiros republicanos vingou nesse meio intelectual, quase todo ele afrancesado. A França viveu as grandes disputas entre católicos e protestantes e criou um antídoto a essas discordâncias, algo diferente da “tolerância” inglesa, na linha de John Locke. A França gerou, na esteira da fusão do Iluminismo com o Romantismo, um pensamento fortemente não-religioso que seguiu de Augusto Comte para Émile Durkheim, e que entrou para o campo pedagógico de modo fecundo, vindo aportar no Brasil de uma maneira muito direta. Os próprios parentes de Durkheim estiveram no Brasil, na linha da sociologia de educação, dando os passos iniciais no campo das Humanidades uspianas. (1)
   No Rio de Janeiro, Durkheim não teve o peso que ganhou em São Paulo. A Universidade do Brasil, na capital carioca, ao menos no início da República, respirou ares mais cosmopolitas. Por isso mesmo, na capital do país outras tendências se fizeram sentir. O pensamento de John Dewey deu o tom para certos núcleos de investigação e, durante um tempo, também atingiu a administração pública municipal. Ao invés do positivismo francês, ou melhor, não só com o positivismo francês, a tradição carioca de reflexão pedagógica se fez marcar pelo pragmatismo americano, não tão aguerridamente laico, mas fortemente materialista.
   Assim, se na Europa o positivismo francês entrava em concorrência com o pragmatismo americano, aqui no Brasil essas tendências se agruparam, tendo como inimigo o pensamento religioso, especialmente o da Igreja Católica.
   A minha geração veio dessa tradição. Filósofos e professores aprenderam com a nossa universidade pública (ou até mesmo com as PUCs, após os anos 60) os benefícios do ensino laico. República laica, ensino laico. Este era o nosso lema. Este é o nosso lema que está sendo desafiado desde os anos noventa.
   O crescimento das igrejas evangélicas no Brasil tem sido enorme. O conservadorismo delas tem sido assustador. E a Igreja Católica, tanto no Brasil quanto no mundo, tem reagido a isso ampliando seu discurso mais conservador ou até mesmo retrógrado. Ao invés de se diferenciar, resolveu competir na mesma faixa, todos em busca de almas e, é claro, de dízimos ou “patrocínios”, como é na linguagem de alguns evangélicos, agora já pagos em cartão.
   Assim, nessa linha atual do novo samba de pastores e padres, o misticismo supera os mitos, o dogmatismo abafa a teologia e a lavagem cerebral substitui o ensino religioso. A religião deixa de ser um lugar de filósofos religiosos, pois ela se transforma no campo do não-pensamento. As vítimas desse tipo de trabalho, pela conta do baixo nível de nosso ensino médio, acabam conseguindo um diploma e, pelas vias mais diversas, chegam à universidade. Ao invés de ficarem em universidades ou faculdades confessionais de suas próprias religiões, adentram a universidade pública. Uma vez nela, começam a desenvolver uma barreira contra a ação educativa universitária. Agem como “quintas colunas”. De dentro da universidade, beneficiados pela “tolerância religiosa” que é bem mais alta no interior da academia que na sociedade em geral, alunos completamente robotizados pelo discurso igrejeiro tentam impor à escola laica o não-pensamento. A sala de aula tornar-se um lugar de difícil desenvolvimento de qualquer dialética de ensino.
   Alguns professores acreditam que isso pode ser resolvido pelo diálogo. Mas eles estão errados. O diálogo pressupõe pessoas racionais em conversação. Não é o caso. O que estamos vivendo nesses tempos é que, de um lado, o lado dos professores laicos, liberais, a disposição para o diálogo existe, mas do lado dos alunos religiosos que sofreram a lavagem cerebral, nada é ouvido senão a voz do pastor – em geral alguém completamente despreparado do ponto de vista intelectual (e moral) – dentro de seus cérebros. Quando o discurso dos conteúdos universitários contraria ou se choca com a voz do pastor, esses alunos “se desligam”, não escutam mais a aula. Outros saem da sala. Outros, ainda, tentam criar confusão – iniciam uma fala decorada de trechos bíblicos, expondo um repentino título de doutor em teologia do besteirol. Em nome da democracia liberal e da tolerância religiosa, muitos professores permitem que esses monstros da barbárie mental falem qualquer coisa e, ao final, para se livrarem deles, os professores acabam os aprovando. Por essa irresponsabilidade nossa, essas pessoas ganham diplomas de nossa universidade pública e, então, uma vez no ensino básico, como professores (!) reproduzem a lavagem cerebral da qual foram vítimas – com os nossos filhos e netos.
   No passado, essas pessoas eram silenciosas. Elas sabiam que estavam num lugar de conhecimento. Elas tinham a noção de que se o pastor era autoridade para elas, não era autoridade nenhuma diante da universidade laica. Agora, a barbárie do ensino médio conduziu-as à perda dessa dimensão. Elas querem, por todos os meios, impor aos colegas e aos professores uma verdade que não é do feitio universitário, porque parte de pressupostos não compartilhados pelo mundo do ensino. Ou seja: nada que é de fé, nada que é do campo dogmático, pode ser levado a sério na universidade, a não ser como dado histórico. O saber acadêmico pede sempre fundamentos e justificativas. Tudo precisa ser argumentado racionalmente, empiricamente, hermeneuticamente, mas nada pode ser mágico. A Bíblia Sagrada é um livro muito importante para a universidade, mas como documento histórico de uma filosofia moral poderosa, que deve ser lido sob múltiplas facetas e perspectivas. Mas isso não é possível diante dos que foram submetidos à lavagem cerebral da ignorância pastoral. O resultado, em curto prazo, pode ser a barbárie. Nosso país pode, rapidamente, ficar mais burro do que já está.
   Caso os professores, diretores e reitores não atacarem esse problema de frente, criando estratégias no sentido de reiterar a autoridade dos professores enquanto agentes laicos, nós poderemos, em pouco tempo, inviabilizar nossa pesquisa, principalmente no campo das Humanidades. Pois o princípio da academia, contra qualquer igreja, é a descrença, o ceticismo, a investigação livre e, principalmente, a inteligência e não a mentalidade fechada. É preciso lançar mão de um novo slogan, algo do tipo: “não é preciso ser burro para ser religioso”. As pessoas podem ter suas religiões, mas elas precisam aprender que o caráter sagrado de suas crenças religiosas pertence à vida privada, e que no campo público, a regra é laica e liberal (2).
   A tolerância religiosa do Estado laico não implica em permitir que as doutrinas religiosas ou, no caso, pseudo-religiosas, retire da universidade o seu prêmio maior para a sociedade, o de ser o lugar onde os jovens entram com uma opinião e podem sair com algo mais que ter opiniões, podem sair com justificativas racionais para suas novas opiniões. As religiões de lavagem cerebral que dominam o Brasil atual são, nesse sentido, um foco de barbárie que, se não tomarmos atitudes agora, poderá vir a  destruir nossas cátedras universitárias. Acreditem, sei do que estou falando. O Brasil corre perigo.

(1) Ver: Ghiraldelli Jr., P. Filosofia e história da educação brasileira. São Paulo: Manole, 2009, segunda edição.
(2) Ver: Zabala, O futuro da religião. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2005. E ainda: Rorty, R. Uma ética laica. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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