terça-feira, 26 de outubro de 2010

As Novas Configurações do Estado na América Latina: democracia em ação

Saindo só um pouco da questão eleitoral propriamente dita, eu gostaria de publicar aqui no blog um artigo escrito pelo meu amigo Carlos Eduardo P. de Pinto. Carlos Eduardo é professor, mestre e doutorando em História, e trata em seu artigo das novas configurações do Estado no âmbito da América Latina, ou Abya Yala, como queiram. Seu enfoque atenta para o fato de como um novo estado vai se configurando no continente a partir, ou em seguida da vaga neoliberal que varreu o continente. Muito bom!! 


As Novas Configurações do Estado na América Latina: democracia em ação[i]
Carlos Eduardo P. de Pinto

Uma retrospectiva panorâmica sobre notícias relativamente recentes a respeito do universo político da América Latina pode passar pela acusação da OEA de que Hugo Chávez estaria aplicando práticas totalitárias na Venezuela; pela liberação dos gastos na Argentina, seguida de cerceamento da imprensa por parte da presidente Cristina Kirchner; por posições contrárias ao crescimento dos gastos estatais durante o segundo mandato do governo Lula no Brasil, criando um “Estado gordo” e ineficiente; pela candidatura de Dilma Rousseff à presidência da República, defendendo um “Estado forte”; pela suposta declaração – depois retratada - da então presidente Michelle Bachelet de que o Chile não necessitaria de ajuda internacional após o terremoto que matou mais de 800 pessoas; e pela reunião de líderes regionais para a formação da CELAC, Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, que visa criar maior integração regional, longe da influência norte-americana. Ainda que o foco seja diferente em cada caso, não se pode deixar de notar que o questionamento sobre o papel do Estado é um denominador comum nas sociedades latino-americanas contemporâneas. Esse artigo propõe uma reflexão sobre as novas configurações que o Estado vem assumindo ao longo dos últimos anos, com interesse especial pela relação entre os novos papéis estatais e o fortalecimento da democracia na América Latina.
A história recente da região, em que pesem as expressivas diferenças locais, tem apresentado enorme sincronia quanto às mudanças nas formas de governo, na estrutura estatal e conseqüentes políticas econômicas. As diversas modalidades de ditadura, estabelecidas nos anos 1960 e 1970, seguiram os postulados da Escola de Chicago, berço do neoliberalismo. Estados ainda fortes e atuantes garantiram o mercado livre e a conseqüente entrada do capital internacional, preparando o caminho para a chegada do neoliberalismo à região, no final da década de 1980.

Ponha-se no seu lugar: o neoliberalismo e a exigência de um Estado mínimo

A partir dos anos 1990, com processos de redemocratização recentes, a América Latina recorreu às “reformas de Estado”, para se ajustar à nova matriz da economia globalizada, seguindo o receituário das agências multilaterais (ONU, FMI, Bird, entre outras). O Estado assumiu ainda mais profundamente o dever de garantir a atratividade para os capitais internacionais, reduzindo o quanto pôde sua atuação, restringindo-se a cobrir reformas de infra-estrutura que não eram atraentes para o setor privado. Através de privatizações, procedeu à descentralização das políticas, aplicando incentivos fiscais, garantindo escoamentos e abrindo mercados, em nome da competitividade. Rompeu-se o paradigma do Estado popular desenvolvimentista e o que era política social transformou-se, para este Estado mínimo, em atendimento emergencial aos mais pobres.

Neste ponto o Estado passou a ter menos poder que as empresas internacionais, cujos interesses orientavam suas ações. Os processos eleitorais tornaram-se uma forma de legitimar o sistema, deixando de ter a força de transformação que já experimentara em outros contextos. A sociedade civil foi desencorajada a participar ativamente dos processos decisórios, estabelecendo-se uma “relação dura e antidemocrática com os segmentos mais críticos e combativos da sociedade civil” [i]. As garantias sociais se tornaram assuntos privados e os governos focalizavam os pontos sociais em que desejavam investir, ao mesmo tempo em que incentivavam a “solidariedade” individual e voluntária, bem como de instituições filantrópicas e ONGs prestadoras de serviços de atendimento. “A democracia vê-se ameaçada, num quadro em que a política no âmbito do Estado, que supõe uma visão de conjunto, é substituída pela política empresarial. Então o que se tem é uma não-política, inclusive no que se refere ao enfrentamento da questão social [...]” [ii]. Novos paradigmas estão na base deste processo, principalmente o deslocamento das explicações macroestruturais para as soluções micro-sociais, que pregam a substituição dos sujeitos coletivos (classes sociais) por atores individuais[iii].

Século XXI: uma nova configuração do Estado no horizonte

Ao longo da primeira década do século XXI, no entanto, essa situação começou a mudar, principalmente depois da crise do capital gerada pelas políticas neoliberais, que atingiram gravemente países como a Argentina e o Equador. Outra reconfiguração do Estado estava em curso. Naomi Klein afirma que, após o fim do “medo coletivo, que foi instilado por meio dos tanques e dos ferretes, das fugas repentinas de capital e dos cortes brutais, muitos estão reivindicando mais democracia e mais controle sobre o mercado” [iv]. A autora se refere à nova esquerda eleita ao longo da primeira década do século XXI. Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Hugo Chávez na Venezuela, Daniel Ortega na Nicarágua, Rafael Correa no Equador, Tabaré Vazquez e José Mujica no Uruguai e Evo Morales na Bolívia chegaram ao poder defendendo, em diferentes graus, uma posição contrária às linhas da Escola de Chicago. Sem posições esquerdistas tão enfáticas, Michelle Bachelet no Chile (recém sucedida por Sebastián Piñera, político de direita) e Néstor Kirchner e sua sucessora Cristina Kirchner, na Argentina, também buscariam alternativas ao neoliberalismo. Embora expressiva, deve-se lembrar que a força da esquerda na América Latina não é absoluta, como nos lembram os casos de Álvaro Uribe na Colômbia e o recém eleito presidente chileno. A orientação à direita, contudo, não deve ser compreendida como opção automática pelo neoliberalismo, embora tal arranjo seja freqüente.
Nesta conjuntura emergiu um processo referido por Renato Boschi e Flávio Gaitán como neodesenvolvimentismo[v]. Entre os presidentes em exercício, é comum haver a defesa da necessidade de interferência do Estado na economia e de “incluir o conteúdo e a orientação das políticas públicas de cada Estado-nação” [vi]. Observa-se que sem intervenção estatal não há forma de se superar as desigualdades sociais internas e entre os países. “Desse modo, em detrimento da privatização e do livre mercado, [destaca-se] a centralidade do Estado desenvolvimentista na geração das condições para o desenvolvimento, incluindo altas taxas de investimento em infra-estrutura, educação, ciência e tecnologia, além de gasto público social” [vii]. Porém, é necessário ressaltar que este não é o mesmo intervencionismo do passado. Em primeiro lugar, o Estado não se apresenta como produtor, apesar desse aspecto aparecer em alguns casos, como o do petróleo no Brasil, Venezuela e Equador, do cobre no Chile e do gás na Bolívia. A atenção estatal está mais voltada agora para a reversão das diferenças sociais e a busca de consensos com os outros Estados latino-americanos.
Este último item é ponto fundamental do processo, uma vez que o Estado neodesenvolvimentista depende das conjunturas políticas locais e regionais, sendo garantido por coalizões políticas que acreditem nele. Percebe-se que, sem um projeto nacional – termo que nada tem a ver com nacionalismo, mas pressupõe a renúncia aos postulados das agências multilaterais e países centrais - não há desenvolvimento. Aqui entra a importância de criação da CELAC, por exemplo, e o mal estar causado pela suposta recusa de ajuda internacional proferida por Bachelet.
Boschi e Gaitán reforçam a importância da política para os resultados na economia, sendo impossível explicar o desempenho das sociedades sem levar em consideração as relações entre as duas esferas. Na América Latina encontram-se diferentes arranjos políticos, que possibilitam maior ou menos grau de exercício democrático. De um lado, um grupo formado por Equador, Bolívia e Venezuela, marcado pela negação da legitimidade de seus líderes e pela dificuldade em se formar uma oposição coerente e estável. O jogo partidário é substituído pela relação direta com a população, fortalecida por movimentos sociais. Um segundo conjunto pode incluir Brasil, Uruguai, Chile e Colômbia, com um sistema partidário que apresenta uma saudável alternância de poder e um papel ativo do Parlamento. Por fim, o caso da Argentina e do Peru, em que não há negação da legitimidade dos governantes, mas também não se apresenta uma oposição significativa.
Neste contexto, o título do artigo ganha sentido, ficando claro que as novas configurações do Estado na América Latina são fruto da ação democrática. Se num passado não tão remoto, a resolução de problemas passava por militarização e autoritarismo, agora se percebe a potência das instituições democráticas, que vem sendo capazes de lidar com situações de crise, como a de 2008/2009. Entre os três casos apresentados no parágrafo acima, os melhores resultados são alcançados pelos países do segundo conjunto, com governos equilibrados entre a estabilidade macro-econômica, a participação de setores políticos e empresariais e a ampliação das políticas sociais. É um equilíbrio complexo, mas fundamental para se evitar o grande risco de que o Estado fortalecido, que tem se mostrado um aliado importante da democracia, venha a comprometê-la.
Não se trata aqui de engrossar o coro dos partidários do neoliberalismo, que insistem em confundir o Estado forte - que interfere na economia com vistas a resolver crises e garantir os avanços sociais - com o Estado gordo, ineficiente, que gasta demais para manter a máquina burocrática e se opõe à suposta liberdade calcada em valores mercadológicos. O intuito é alertar para o risco de se confundir Estado forte com Estado autoritário, o que seria sem dúvida um retrocesso no avanço alcançado pela democracia nos últimos dez anos. As conquistas sociais não se justificariam se para mantê-las tivéssemos que abrir mão da verdadeira liberdade: a de se expressar e de votar.



[i] Elaine Rosseti Behring, As novas configurações do Estado e da sociedade civil no contexto da crise do capital, p.6. Em www.prof.joaodantas.nom.br [consultado em 13 de março de 2010].
[ii] Idem, p. 17.
[iii]Anete Brito Leal Ivo, As transformações do Estado Contemporâneo. In: Caderno CHR, n. 35, jul/dez. 2001. Em www.cadernocrh.ufba.br [consultado em 19 de março de 2010].

[iv] Naomi Klein, A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 532.
[v] Renato Boschi e Flávio Gaitán. Intervencionismo estatal e políticas de desenvolvimento na América Latina, p. 306. In: Caderno CRH, vol 21, n.53, maio/ago. 2008. Em www.cadernocrh.ufba.br [consultado em 20 de março de 2010].
[vi] Idem, p. 307.
[vii] Ibidem, p. 310.



[i] Publicado em Revista Novamerica, n. 126, abr-jun 2010.

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